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A simbologia no uniforme do Capitão Marvel!

Saiba o que significa cada detalhe nos personagens e no traje do Capitão Marvel

Um dos mistérios embutidos na mitologia do grande Campeão da Magia, o Capitão Marvel, é a sua procedência quanto à natureza do seu uniforme. Durante os anos que o acompanhei (LJA 1ª série, Shazam, pós-Zero-Hora), nunca tinha notado as evidências, já que Shazam é a mescla de um panteão de divindades gregas. Contudo, após ter lido Shazam! A Origem do Capitão Marvel, do ilustre Jerry Ordway, percebi a dominância de elementos hebraicos e egípcios, com mesclas cabalísticas, nesse icônico super-herói. Confira aqui as evidências de minha observação ao longo dos anos.

O Mago: cananeu ou egípcio?
Na série live-action “As Aventuras do Capitão Marvel” (1941), de 12 capítulos, o Mago foi mostrado como um ancião hebreu, à imagem de Moisés.

De acordo com um conto roteirizado por E. Nelson Bridwell em World’s Finest Comics # 262 (abril de 1980), “Shazam” era um arquétipo de um personagem ancestral chamado Mago, o primeiro depositário dos poderes mágicos do mundo. Ele era, há 7 mil anos, um simples pastor de ovelhas em Canaã, quando aquela terra não conhecia o monoteísmo, reportando-se a um tempo bíblico pré-diluviano. Virtuoso e de mesmo jeito como Moisés, esse pastor se deparou com uma flâmula ardente, que pediu para ele pronunciar a palavra “VLAREM!” (“Marvel”, embaralhada). “Vlarem” era a junção das maiores divindades cananeias: Voldar, força; Lumian, sabedoria; Arel, velocidade; Ribalvei, poder; Elbiam, coragem; Marzosh, resistência. Ao falar “VLAREM”, o Mago tornou-se O Campeão, depositário da magia e guardião da Pedra da Eternidade.

Entretanto, nas histórias em quadrinhos da Era de Ouro (1938-1956), o Mago identificava-se como sendo um ancião egípcio, portador do esoterismo e da sabedoria do mundo antigo, simbolizado na mística do Egito das artes ocultas. Sua caracterização mais parecia com a de um bruxo, um feiticeiro do deserto. Esse Mago egípcio, conforme os contos foram se estendendo, era originariamente um homem chamado Shazamo, sendo a última letra do nome (/O/)  representativa do herói da magia, Oggar. No entanto, Oggar se tornou corrupto e tentou tomar o poder de Shazamo. O Mago, na condição de O Campeão, derrotou Oggar e o amaldiçoou a viver entre o mundo dos mortais, foi quando então Shazamo, ressentido e desapontado, excluiu o “O”, a última letra do seu nome, ficando então Shazam.

Capa de “Marvel Family” nº 1 (dez. de 1945), arte de C.C. Beck. O Mago caracterizado como um místico esotérico.

Por muito tempo, a ambiguidade de o Mago ser cananeu ou egípcio, perdurou. De acordo com o cânone clássico da Fawcett Comics, de Bill Parker, o nome do Mago sempre foi Shazam, um idoso gentil, casto, puro, experiente, habilidoso e guardião da magia. Parker não se preocupou, de fato, com sua origem, mas, para todos os fins, o Mago Shazam era egípcio. Já no cânone da DC Comics, de Nelson Bridwell, o nome do Mago era Jebediah de Canaã, e portanto cananeu, e sua evocação não era pelo nome SHAZAM, e sim VLAREM. Diferente do Mago da Fawcett, Jabediah, antes de ser mago, era um jovem pastor de ovelhas (porém, quando transformado, assumia uma forma adulta capacitada) e, por ser jovem, era mais inexperiente e susceptível; ele foi seduzido, deitando-se com Lilith, conforme a cabala, a primeira mulher criada pelo Deus hebraico, ela, que fez uma aliança com Lúcifer, sendo expulsa do Paraíso, tornando-se uma demônia. Desse coito com o Mago Jebediah nasceram Satanus e Blaze, semidemônios que tentaram matar o pai, Jebediah. Após esse ultraje, os deuses Voldar, Lumian, Arel, Ribalvei, Elbiam e Marzosh (VLAREM) destituíram o Mago de sua missão, deixando ele de ser O Campeão, forçando-o a buscar um sucessor.

“World’s Finest” vol 1, nº 262 (mai. de 1980), na arte de Don Newton. O Mago Jebediah (VLAREM), transformado em O Campeão, do ano 7.000 a.C., viaja no tempo para conhecer Billy Batson, o Capitão Marvel. Note os traços fisionômicos semelhantes à representação pictórica dos antigos guerreiros hebreus, a exemplo de Davi.

Recentemente, com a fase do reboot Os Novos 52, (donde vem a maioria dos elementos do futuro filme do Shazam) e por isso mesmo um novo cânone, de Geoff Johns, o retorno à ambiguidade reapareceu. Ficou estabelecido que o verdadeiro nome do Mago é Mamaragan, natural do Kahndaq, uma nação fictícia situada entre o Egito e a Palestina na parte norte da Península do Sinai. Desde 2005, no arco “Dia de Vingança”, da Sociedade da Justiça da América, o Kahndaq figura na cronologia do Capitão Marvel, pois, segundo aquele arco, Kahndaq é a terra natal de Teth-Adam, o Adão Negro, cujo qual, mais tarde, se tornaria seu rei.

Mamaragan, o Mago Shazam da cronologia dos Novos 52 (2012), ocupando o centro dos 7 tronos do Conselho dos Magos. Sua caracterização destoa das antigas, mesclando traços africanos com egípcios.
O Shazam corrompido é uma alegoria do conflito entre Moisés e o faraó?

O Adão Negro é, pelo nome, uma explícita alusão ao personagem talmúdico Adão, considerado o primeiro homem a decair. Adão Negro era, no começo e conforme o cânone clássico tanto da Fawcett quanto o da DC, o príncipe Thet-Adam, filho do faraó Ramsés-II, o mesmo que escravizou os hebreus na Bíblia no antigo Egito. Ele foi vocacionado para ser o sucessor do Mago, um novo Campeão da Magia. Na soberba por poder, Thet-Adam enlouqueceu, destituído da missão, tornando-se a contraparte mal do Capitão Marvel, seu sucessor. O conflito entre Adão Negro e o Capitão Marvel parece sugerir uma atualização do conflito entre o faraó e Moisés no Êxodo bíblico, e isso se tornou mais perceptível quando do arco Dia da Vingança, de Bill Willingham, Justiniano e Walden Wong, momento em que o país Kahndaq é governado por um ditador chamado Asim Muhunnad, deposto pelo Adão Negro, que, em seguida, torna-se seu soberano com leis igualmente ditatoriais.

Adão Negro no traço e na cor realistas de Alex Ross para uma das capas de “Justiça” nº 07 (out. de 2006).
 O uniforme tradicional do Capitão Marvel 

A meu ver, assim como o antigo Mago Shazam e suas ambiguidades, o traje do Capitão Marvel é composto por elementos e combinações ambíguas, que ora parecem ser hebraicos, ora parecem ser egípcios. Comecemos pelo anagrama SHAZAM. Como é sabido, SHAZAM é um acrônimo de seis heróis do mundo antigo (com suas maiores habilidades); são eles:

S Salomão ───── {sabedoria}

H Hércules ───── {superforça}

A Atlas ───── {resistência}

Z Zeus ───── {poder}

A Aquiles ───── {coragem}

M Mercúrio ───── {velocidade}

Percebamos que a sequência “HAZAM” é toda feita por divindades do panteão grego, enquanto a unidade “S” destoa completamente dessa linha lógica. Temos um personagem do Antigo Oriente, o rei Salomão, um judeu em meio aos gregos. Bill Parker e C.C. Beck poderiam ter concebido, por exemplo, a unidade “S” como sendo a “sabedoria de Sócrates”, o fundador da filosofia grega, ou então comutar a unidade “A” (pondo qualquer outro personagem grego na unidade “S”, como Sísifo, Simóis, Siroco ou Sirene) para um “A” de “Atena ou Apolo, com sua sabedoria”já que ambos eram, na crença helênica, os deuses mais sábios do Olimpo.

Assim como é todo o seu conceito, o uniforme clássico do Capitão Marvel é uma mescla de elementos hebraicos e egípcios. Estatueta da Iron Studios na arte conceitual do brasileiro Ivan Reis.

Mas não foi o que fizeram. Aliás, a unidade “S” como Salomão era um conceito tão bem decidido que ele já constava na primeira ideia da dupla criativa, a de que Shazam era para ser uma superequipe de 6 jovens, cada qual com uma habilidade específica do anagrama. Talvez o conceito tenha sofrido alguma influência do fato de Otto Binder e Charles Clarence Beck terem sido de confissão luterana, uma doutrina que conserva alguns postulados da fé judaica.

A primeira ideia para o conceito de Shazam na arte de C.C. Beck: uma superequipe (rejeitada pelos editores da Fawcett) de 6 jovens. Notemos que o “S” de Salomão já estava lá. 70 anos depois, o conceito da superequipe foi homenageado nas séries Flashpoint e Os Novos 52.

Sabe-se que a estampa do raio de trovão no peito do Shazam é uma alusão a Zeus, o deus do trovão na mitologia grega. Entretanto, a cor vermelha do uniforme segue sendo um mistério. O que se sabe de certo é que foi escolhida como cor oposta ao azul do concorrente Superman. Contudo, há duas especulações:

1. Especulação egípcia — o deus Seth. Seth, na arcaica religião egípcia, era uma divindade ligada ao fervor do deserto e o frescor das tormentas. O escaldante deserto, no imaginário dos povos do Nilo, recebia uma associação à cor vermelha, assim como o ribombar dos trovões das tempestades. Então a cor vermelha estava para Seth, assim como Seth estaria para o Capitão Marvel que, a princípio, iria se chamar “Capitão Trovão”.

2. Especulação hebraica — pedras de vidência. urim e o tumim eram joias preciosas consideradas pelo povo israelita no delta do Sinai. Uma resposta era revelada diante da Arca da Aliança, com o sacerdote olhando para as letras que se acendiam por influência das duas pedras, consideradas revelação divina. Uma das pedras era de cor vermelha. O colchete frontal do peitoral do uniforme de Shazam, que é fechado com um botão lateral ao peito, parece ser uma menção ao Peitoral Choshen dos sumo-sacerdotes, local onde guardavam o urim e o tumim.

Uma das representações pictóricas mais antiga do deus Seth, no Vale dos Reis, Luxor, Egito. Notemos seu véu em vermelho. Ao lado, pintura de um sacerdote judaico usando as pedras de urim e tumim.

O cinto dourado do uniforme de Shazam pode ser entendido como um elemento egípcio ou judaico.

1. Especulação egípcia — faixa da cintura dos deuses, do faraó e dos escribas.

2. Especulação hebraica — o cordão de silício e o éfode, usados para cingir o sacerdote hebreu.

Da esq. para dir., entalhe e pintura em Deir el-Bahri, Luxor. As faixas na cintura também eram usadas por soldados de guerra. Gravura de um sacerdote israelita usando o éfode (o colete amarelo) e o silício à cintura (a faixa azul).

Os braceletes e as botas douradas ganham outra direção de sentido. Como discutido na Coleção Shazam do especialista no personagem, Rivison Delmondes, no Google+, os braceletes têm muita semelhança com as punheiras do uniforme dos oficiais do Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos. Entretanto, sustento ainda que a base de inspiração seja ainda a bidimensionalidade Egito-Israel, com as seguintes hipóteses:

As punheiras, famosos frisos listrados em amarelo da marinha dos EUA, podem ter sido a base de inspiração dos braceletes do Shazam.

(hipótese egípcia) pode referir-se aos punhos, mangas ou saios dos marinheiros egípcios que continham faixas ou riscos;

●  (hipótese hebraica) pode referir-se à placa dourada fixada na mitra que o sacerdote hebreu empenhava.

Acima, miniatura de embarcação egípcia. Era comum à barra do saio dos navegadores conter faixas com frisos, riscos. O capitão usava braceletes para distinguir patentes. Abaixo, detalhe da placa dourada na fronte da mitra de um sacerdote israelita.

A capa branca com emblemas e faixa dourados do Capitão Marvel é entendida por especialistas no personagem, como Sandro Marcio Moreira, como a capa dos nobres ingleses da monarquia absolutista, já que estas não eram lineares, ostentavam brasões e mantinham uma leva inclinação. De minha parte suponho ser uma alusão ao talit (xale de orações dos homens judeus), que, inclusive, só podia ser branco tecido com linho azul, preto ou dourado, para distinguir dos talits samaritanos, dissidentes dos judeus. A cordinha do colarinho da capa de Shazam suponho ser uma atará (cordão costurado na parte superior do talit, para colocá-lo sobre os ombros); e o emblema na capa do herói é a flor-de-lis, sinônimo de pureza vindo da festa de Purim.

Representação de um nobre cortês usando capa e a do talit judaico.

Ainda Sandro Marcio Moreira complementa que “outros autores da Fawcett, pelo que parece, gostavam da cultura egípcia, pois eles criaram também o personagem Íbis, que era ligado ao Egito”. De todo modo, sob as aparências do anagrama “SHAZAM”, o Capitão Marvel, do conceito ao uniforme, se mostra um ser sincrético, ligado às religiões da Idade Antiga: ele tem procedência grega, egípcia e hebraica, e isso, por si só, é interessante, é mágico.

Wagner Ávlis

Crítico de histórias em quadrinhos, membro da Academia Maceioense de Letras, articulista e professor de língua portuguesa.