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Crítica de HQ | Com a Palavra Mágica, SHAZAM! (3ª parte)

Duas boas notícias de Shazam! animaram a semana passada: Mark Strong (o Merlin de Kingsman) será o arqui-inimigo Dr. Silvana; e o diretor David Sandberg disse que o humor do filme terá dose equilibrada. Animados com isso, nós prosseguimos com a crítica de HQ do Campeão da Magia.

[Confira aqui a 2ª parte]

A editora Fawcett desistiu de lutar pelo Capitão Marvel em 1953, indenizando em 400 mil dólares a National Periodicals (futura DC Comics), que a processou alegando plágio do Superman, sendo por esta adquirido depois. Com Shazam pertencendo à DC, a supremacia do heroísmo foi passada para o Homem de Aço porque o Mortal Mais Poderoso do Mundo ficaria propositalmente engavetado (numa espécie de ressentimento da DC pelas altas somas de dinheiro gastas na ação judicial), desconhecido das futuras gerações. Somente no longínquo 1973 o herói seria publicado, agora com o título de capa “Shazam” (porque a Marvel Comics detinha direitos sobre a marca “Capitão Marvel”), sem a áurea que um dia ostentou dentre o gênero de super-heróis. Isso se mantém até hoje, razão por que muitos de vocês não o conhecem.

Para entender todo esse contexto, é necessário saber, antes de tudo, que foi o Superman quem deu nascimento à onda de gibis de super-heróis em junho de 1938. O sucesso foi tão estrondoso que não coube num só personagem: extravasou-se para conceitos de outros com alguma semelhança, de sorte que todos eles foram tomando fama na carona do kryptoniano, e o Capitão Marvel foi um deles quando publicado em fevereiro de 1940. As semelhanças eram indiscutíveis, como se vê abaixo[1]:

Superman (1938)
Capitão Marvel (1940)
Órfão de pai e mãe
Órfão de pai e mãe
Vocacionado pelo destino, por meio da tecnologia, a ser herói
Vocacionado pelo destino, por meio da magia, a ser herói
Clark Kent, repórter do Estrela da Manhã (futuro Planeta Diário)
Billy Batson, repórter da rádio WHIZ
Cabelos pretos/curtos
Cabelos pretos/curtos
Musculoso, hiperpoderoso, invulnerável, supervelocista
Musculoso, hiperpoderoso, invulnerável, supervelocista
Vilão careca e cientista louco: Ultra-Humanoide (1939)
Vilão careca e cientista louco: Dr. Silvana (1940)

Em matéria de arte, isso é tido por inspirações, não plágios, até porque as “coincidências” só existem até certo ponto; depois, os entes fictícios costumam a se diferenciar, tomando cada um seu caminho. O Capitão Marvel provou não ser uma cópia do Superman precisamente por tomar seu rumo sem mais precisar dos clichês e das inspirações em torno do Homem de Aço, logrando, inclusive, mais fama, fortuna, publicidade. É de Shazam o primeiro filme live-action de um super-herói, em 1941, evento que incomodou a DC, fazendo mover o primeiro processo judicial contra a Fawcett. À medida que a DC insistia no litígio, a Fawcett, de modo astuto, enquanto se defendia em tribunal, defendia-se também na redação. Para afastar qualquer aparente vínculo com o Superman – um super-herói urbano e com ações no plano terreno – e tentar vencer o processo, a equipe criativa do Capitão Marvel o diferenciava cada vez mais – agora um super-herói cósmico, com ações no plano sideral – com ideias inovadoras que o Homem de Aço estava longe de possuir. Vejam elas[2].

Escoteirismo (1940)
Sabedoria [de Salomão] (WHIZ n° 02, fevereiro de 1940). [Com ela, podia construir estruturas e mecanismos complexos].
Rocha da Eternidade (WHIZ n° 02, fevereiro de 1940)
Voo (WHIZ n° 05, junho de 1940)
Versão jovem/sidekick: Capitão Marvel Jr. (WHIZ nº 25, dezembro de 1941).
Versão feminina/sidekick: [irmã] Mary Marvel (Captain Marvel Adventures nº 18, dezembro de 1942).
Versão maligna/vilão: Adão Negro (The Marvel Family # 01, dezembro de 1945).
Coadjuvante galhofa: Sr. Malhado [Tawky Tawny] (Captain Marvel Adventures nº 79, dezembro de 1947).
Superanimal: Joca [Hoppy], o Coelho Marvel (Fawcett’s Funny Animals nº 01, dezembro de 1942).
Capitão, Mary e Capitão Marvel Jr. rebocadores e destruidores de estrelas (Marvel Family 28/Captain Marvel Jr. 93 e 95).
Chuva de meteoros contra um sistema planetário impedida pelo Capitão Marvel no arremesso duma estrela morta (Captain Marvel Adventures nº 98).
Reorganização duma Galáxia e salvamento de outra por extinção pela Família Marvel (Marvel Family nºs 61 e 68).
Capitão Marvel recolocando e retirando planetas em órbita (Captain Marvel Adventures nºs 28, 95, 97, 145).
Superresistência à bomba 16 milhões de vezes que a atômica (Whiz Comics nº 104).
Invulnerabilidade à explosão planetária (Captain Marvel Adventures nº 71).
Invulnerabilidades
✓ à radiação cósmica (Captain Marvel Adventures nºs 111 e 148),
✓ ao zero absoluto (Marvel Family nº 21),
✓ a raios desintegradores (Whiz Comics nº 135),
✓ a bombas atômicas de ogivas desconhecidas (Marvel Family nº 7, Whiz Comics nº 150),
✓ a raios galácticos (Marvel Family nº 55),
✓ ao calor solar extremo (Marvel Family nº 55 e 68),
✓ ao “raio da morte” (Captain Marvel Adventures nº 138),
✓ à bomba-H (Captain Marvel Adventures nº 145),
✓ a ácidos (Captain Marvel Adventures nº 99 e 134),
✓ a vibrações (Captain Marvel Adventures nº 89),
✓ a raio incendiário de planetas (Whiz Comics nº 123).
Super-habilidades:
✓ Força e resistência dos deuses Hércules e Atlas (Captain Marvel Adventures #1);
✓ perícia marcial e habilidade do semideus Aquiles (Captain Marvel Adventures nº 144);
✓ vencedor de deuses – vence o deus Marte que havia juntado seus poderes com cinco deuses, lembrando a história “Superman vs. Zha-vam” (Captain Marvel Adventures nºs 31 e 92, Whiz Comics nºs 87 e 125);
✓ destruir planetas (Captain Marvel Adventures nºs 43 e 141);
✓ “marvel sopro” (Whiz Comics nº 144);
✓ soco atômico [soco do trovão] (Captain Marvel Adventures nº 88);
✓ super-hipnose (Whiz Comics nº 18);
Família Marvel mais rápida do que a luz (Captain Marvel Adventures nºs 79 e 145, Captain Marvel Jr. nº 56, Mary Marvel nº 9) e do que a barreira do espaço-tempo (Captain Marvel Adventures nº 145, Captain Marvel Jr. nº 95).
Família Marvel sobrevivente do “além-infinito”, onde nada existia ou podia sobreviver (Marvel Family nº 68).
Força (Captain Marvel Adventures nºs 28 e 139), poder (Captain Marvel Adventures nº 139), resistência (Captain Marvel Adventures nº 144), velocidade (Captain Marvel Adventures nº 98) ilimitados.
Cópia ou inspiração? Em arte contemporânea esses conceitos são bem definidos, bem diferente nos anos 1940. No centro, Capitão Marvel arremessa uma estrela morta contra meteoros. Abaixo, a sabedoria de Salomão realizando proezas em engenharia espacial anos antes do Superman.

A querela judicial entre as duas editoras se estendeu por 12 anos em três etapas, indo de 1941 a 1953. A editora do Capitão Marvel só venceu a primeira etapa; nas seguintes passou a sofrer desvantagens. É que, fora dos tribunais, a mudança para a década de 1950 fez mudar tendências de mercado e gostos do público; diversos super-heróis passaram a sumir do circuito, títulos cancelados, pequenas editoras fecharam. A equipe criativa do Superman, num olhar perspicaz sobre as novas tendências, arriscou-se em mantê-lo urbano, enfrentando guerras, monstros e assassinos; a equipe criativa do Capitão Marvel, sentindo a queda do mercado, arriscou tirar o Capitão Marvel das histórias cosmológicas para enquadrá-lo entre lobisomens, fantasmas e assassinos em série. Não só caiu em vendas como quebrou. Não bastasse, o ator Fred MacMurray entrou no julgamento contra a Fawcett reivindicando seus direitos, por julgar que sua imagem foi apropriada indevidamente pelos desenhistas do Capitão Marvel[3]. Aturdida e sem otimismo pela melhora do mercado, a Fawcett desistiu de continuar a briga com a DC, perdendo o processo. Desde a primeira etapa do litígio até seu fim, a DC, numa prática ardilosa e até irônica, de pouco em pouco e à surdina, ia aperfeiçoando o Superman à imagem do Capitão Marvel, fato que poderia fazer a Fawcett vencê-la. Mas, como se diz nos anais artísticos, não foi a justiça que liquidou o Capitão Marvel, e sim os seus leitores que o abandonaram[4]. Vencida a luta jurídica, os conceitos do Capitão Marvel foram transferidos ao Superman, sobretudo porque a DC contratou Otto Binder e Kurt Schaffenberger, roteiristas do derrotado Marvel, para serem agora do Homem de Aço. “No fim, o Capitão Marvel, que foi inspirado no Superman, serviu de inspiração para o mesmo Superman”[5]. E assim ficou definido o Superman (às custas do Capitão Marvel) como nós o conhecemos:

Escoteirismo (1942). [Antes disso, não servia à América nem às leis; não se importava em destruir patrimônio, torturar/matar malfeitores].
Superman como “o grande engenheiro” (1950). [Ele passou a ser capaz de realizar prodígios da engenharia].
Fortaleza da Solidão (1958).
Voo (1943). [Antes ele dava hiper-saltos].
Versão jovem/sidekick: Superboy (1945).
Versão feminina/sidekick: [prima] Supergirl (1959).
Versão maligna/vilão: Bizarro (1958).
Coadjuvante galhofa: Mr. Mxyzptlk (1944).
Superanimal: cachorro Krypto (1955).
Superresistência em nível cósmico (1950).
Superman rebocador de planetas (1955).
Super-habilidades em nível cósmico/divino (a partir de 1953).
Super-sopro [sopro congelante] (1953).
Superventriloquismo e super-hipnose (1962).
Superman pode sobreviver e sair da Zona Fantasma (1961).
Força, poder, resistência, velocidade ilimitados.
Os anos 1950-60′ consolidaram o Superman como o ser mais poderoso depois que este assimilou os conceitos do Capitão Marvel, venceu-o nos tribunais e o retirou de circulação. Acima: o espirro que bagunçou um sistema solar; no centro: o rebocador de planetas; abaixo: o engenheiro.

Luta de titãs

O conto aqui analisado é de 1978, época em que a DC comprou os direitos sobre o Capitão Marvel e passou a publicá-lo. Trata-se do terceiro e mais longo confronto entre o Superman e o Capitão Marvel – dentre os tantos que se seguiriam (o primeiro ocorreu em Superman #276, 1974, com Capitão Marvel chamado de “Capitão Trovão” [no Brasil, “Capitão Corisco”]; o segundo foi em Justice League of America # 137, 1976). Nesse conto, chamado “Quando as Terras se Chocam”, um marciano busca redenção por ter extinguido seu povo. Na tentativa de trazê-lo de volta à vida ele constrói dois dispositivos que eliminam o campo magnético de planetas, a fim de colidirem e, com a energia resultante, ressuscitar os marcianos. Para tanto ele manipula mentalmente os dois mais poderosos seres conhecidos, o Superman, da Terra-1, e o Capitão Marvel, da Terra-S, para que se confrontem enquanto as suas Terras se chocam. Coadjuvantes como Adão Negro, Quarrmer, Mary Marvel e Supergirl auxiliam, os dois primeiros, no lado do mal, as últimas, no lado do bem (cf. Almanaque de Super-Heróis. Superman versus Shazam: O Homem de Aço contra o Mortal Mais Poderoso do Mundo. “Quando as terras se chocam”. Rio de Janeiro: ed. EBAL, 1980, 69 págs. Roteiro de Gerry Conway, arte de Rich Buckler e Dick Giordano).

Quando a palavra vira forma e a forma vira palavra  

 O simples leitor mais o resenhista comum irão comentar o crossover entre os dois super-heróis na forma como se vê por aí: resumo do enredo, cenas de luta, furos de roteiro, qualidade do desenho, quadros empolgantes (o chamado “massavéio”), se gostou ou não. Fim. O crítico de arte não, pois segue por outros caminhos. Se se quer tecer uma crítica para descobrir a plenitude do engenho artístico é necessário o tino de enxergar o encoberto para trazê-lo às vistas de todo mundo; e, como dita a experiência, o encoberto está coberto por aquilo que todos podem ver. É o crítico que, como um detetive, tem os meios para enxergar além do que os demais veem, e a primeira coisa que todo mundo vê numa história em quadrinhos é o desenho e a palavra, as quais formam a linguagem mista dessa arte. Fixemos bem: desenho e palavra são linguagem, e não um algoritmo que encerra em si mesmo o significado daquilo que representa. A linguagem, por sua vez, funde lógica e poética, e isso por si só é o mecanismo das interpretações, já que o pensamento e a poética são um universo de possibilidades. Disso resulta que a palavra (o texto) ou o desenho muitas vezes é a forma (ou design) que pretende representar algo ou ter com esse algo uma relação analógica; é o princípio da poesia visual vinda do concretismo, que busca, através da linguagem, abstrair-se do objeto real, concretizando uma figura ou imagem formada desse objeto numa nova forma de compreender a relação entre referente (ser ou objeto), signo (código), significante (expressão) e significado (ideia). Se eu perguntasse a vocês (referente) em português (signo) o que traz à mente a palavra “excitação” (significante), o que iriam me dizer era o significado. Esse significado iria variar de pessoa para pessoa, sempre ligado às experiências do falante; do sexo, passando pelo chocolate, até à pré-estreia de Star Wars no cinema, tudo pode significar para cada um “excitação”. Indo um pouco mais, se eu perguntasse qual cor e qual som vocês associam à palavra “excitação”, as respostas seriam as mais curiosas possíveis: rosa, vermelho, roxo, escuro, turvo, branco, ruído de chuva, marejo das ondas, orgasmo, “eu te amo” ao ouvido, gargalhada de neném, deglutição sedenta de Coca-Cola ou água gelada, etc. Notem como a palavra aí já não é mais a transcrição do som das coisas, nem as coisas são em si; a palavra agora assume a forma das coisas e as coisas se tornam textos, eis o mundo da poética, da poesia visual que coabita com os quadrinhos.

Significante é o plano da expressão, a parte física do signo (som e letra). Significado: plano do conteúdo, parte inteligível e abstrata, é o conceito, a ideia.

Superman e Capitão Marvel: significantes de significados maiores.

 Agora que o crítico tem em mãos o princípio da poética visual, fica fácil enxergar o encoberto no que está explícito e descobri-lo. O roteirista e os desenhistas do conto em questão fazem uso de uma alegoria em que a imagem e o discurso do Superman e do Capitão Marvel não são apenas heróis lutando em escala de destruição Dragon Ball; a imagem e o discurso do Superman são um significante: uma forma para a personificação da editora DC Comics; e a imagem e o discurso do Capitão Marvel são a personificação da editora Fawcett; a batalha de ambos é a batalha das editoras nos tribunais. Karmang, o vilão que se vê órfão de todo o povo marciano e que quer ressuscitá-lo, é o sentimento de orfandade geral daqueles que se viram até ali “órfãos” do Capitão Marvel desde o cancelamento do herói nos anos 1950, mas que ainda relutavam em ressuscitá-lo como nos anos dourados. Quarrmer (um Superman de areia, mas que teria o mesmo efeito se fosse usado o Bizarro), Adão Negro (versão maligna de Shazam), Supergirl e Mary Marvel (versões femininas dos supers) significam os empréstimos artísticos que a equipe criativa do Superman tirou da do Capitão Marvel durante a ação judicial. O Mago Shazam que interfere na luta do Capitão Marvel contra Superman (p.53), terminando por favorecer a este, é a repentina intervenção do ator Fred MacMurray no processo (que enfraqueceu a luta da Fawcett). O “raio da razão”, usado contra os protagonistas para que briguem, é um recurso de ironia (tanto no plano linguístico quanto no histórico), pois o raio, na realidade, cega a razão dos personagens em benefício do discurso. Não é essa a prática de muitos advogados em tribunais? Este terceiro e longo confronto entre os mais superpoderosos sugere o mesmo prolongamento com a mesma dose de ataques que houve a terceira etapa do processo “DC vs. Fawcett”, por isso há mais lutas, por todos os lados, neste esquema:

Das versões malignas tomadas de empréstimo durante e depois do processo judicial
Superman x Adão Negro / Capitão Marvel x Quarrmer (podendo ter sido Bizarro)
Dos sidekicks criados durante e depois do processo judicial
Supergirl x Adão Negro / Mary Marvel x Quarrmer (podendo ter sido Bizarro)
Das editoras em juízo
Superman x Capitão Marvel
Da DC contra os fãs “órfãos” e que queriam o Capitão Marvel de volta à majestade
Supergirl – Mary Marvel – Mago Shazam x Karmang.

No conto, o processo do combate entre Superman e Capitão Marvel obedece à ordem dos acontecimentos do embate “DC vs. Fawcett”. Espiemos alguns[6].

No conto

Frase no gibi

Fato judicial

Superman se sente atacado primeiro pelo Capitão Marvel (disfarce do Adão Negro)
“Foi o Capitão Marvel quem fez isso! Ele ousou me atacar…, e agora ele vai pagar caro!” (p.17).
Após o sucesso de vendas das HQs e da estreia da live-action do Capitão Marvel, a DC se sente plagiada pela Fawcett e instaura o processo (1941).
Capitão Marvel é atacado pelas costas pelo Superman (disfarce de Quarrmer)
Não consigo me livrar da sensação de que vai acontecer algo terrível… Diacho! Alguém me atingiu por trás e com tanta força que perdi o controle. Só existe uma pessoa com força suficiente pra fazer isso…” (p.29).
Intimada a comparecer em audiência, a Fawcett estranha e não esperava o motivo: o Capitão Marvel é acusado de ser um plágio do Superman (1941).
Capitão Marvel se sente indignado com o ataque e exclama para Mary Marvel que ele não precisa de ajuda, que é superior a ela e ao Superman
“Sou melhor do que todos! Melhor do que você e mais poderoso do que Superman” (p.32).
A editora Fawcett comparece em juízo e vence a primeira etapa do processo. A DC recorre (1942).
A Terra-1 (onde habita o Superman) é invadida pelo verdadeiro Capitão Marvel e por Mary Marvel sedentos por revanche
“Tão aturdido o Capitão está que nem tenta se aconselhar com o sábio. Mergulha na direção da Rocha [da Eternidade], desvia… E precipita-se no universo da Terra-1. Terá início um combate que só poderá terminar em catástrofe” (p.35).
Movida pelo apelo da DC na corte, a Fawcett sai da defensiva para a ofensiva. Busca questionar em tribunal a precedência dos poderes do Superman, usando personagens com superforça mais antigos, como Doc. Savage e Popeye (até 1948).
Superman não sai do seu mundo para ir ao mundo do rival. Permanece de tocaia em Metrópolis aguardando o ataque do Capitão Marvel
“O Homem de Aço vem procurando o Mortal Mais Poderoso do Mundo em Metrópolis. E se prepara pra atacar…” (p.35).
Ciente de que as novas tendências em quadrinhos favoreciam à linha de trabalho com o Superman, a DC não mexe no personagem, enquanto a Fawcett reformula o Capitão Marvel, agora mais poderoso e cósmico, para se distanciar de vez do seu concorrente (c.1944-1950).
Os dois super-heróis se defrontam nos ares
Capitão Marvel! Dessa vez não lhe darei oportunidade… Eu vou esmagá-lo como a um inseto”/ “Superman! Você queria ter uma luta comigo e agora vai tê-la. Você quem vai ser esmagado” (p.36).
Nova audiência (1948).
Capitão Marvel, após receber um super-soco, lança contra Superman um muro de tijolos
“Jogando entulho contra mim? Ora, você está brincando! Posso suportar o impacto duma explosão nuclear! Já mergulhei no interior de uma estrela de primeira grandeza! Tenho lutado contra monstros imensos capazes de devorar planetas inteiros! E você tenta me esmagar com uma parede de tijolos? Tem graça!” (p.38).
A DC, sabendo do enfraquecimento das vendas do concorrente, ficou mais confiante nos rumos que o processo tomaria em seu favor, passando a tomar vantagem na briga. Previu que a reformulação que o concorrente empreendeu estava se virando contra ele. As cifras do Superman, apesar de em queda, estavam em alta em relação às do Capitão Marvel, que caíam vertiginosamente (c.1952).
O Capitão Marvel percebe que fora do seu universo da Terra-S se enfraquece, e é derrotado pelo Superman
“Acho que neste universo os meus poderes são mais fracos” (p.49).
Declínio do gênero dos super-heróis. Fawcett contabilizou perda de altas somas de dinheiro nas suas outras revistas em quadrinhos, concluindo que até as revistas do Capitão Marvel não podiam cobrir suas perdas, pois estavam também em franco declínio (c.1952/53).
Como último recurso, o Capitão Marvel intenta atingir Superman com o trovão mágico, porém, o Mago Shazam interfere, favorecendo, na prática, a vitória do Superman
“É preciso que a luta não termine, pois aqui há forças além da sua compreensão. E que seja como está escrito” (p.53).
O ator Fred MacMurray instaura nova ação judicial contra a Fawcett, endividando-a de vez. Desistência do processo: a DC sai vitoriosa e indenizada (1953).
Capitão e Mary Marvel com Superman e Supergirl chegam ao entendimento e firmam amizade.
“[…] E agora se entendem, talvez um tanto melhor do que antes. Errar é humano, e só os mais afortunados podem rir dos seus próprios erros” (p.66).
A DC compra os direitos da Família Marvel e a incorpora ao universo tradicional de seus super-heróis (1972/1973).
Cena da derrota do Capitão Marvel. O Mortal Mais Poderoso do Mundo já vinha apanhando vergonhosamente capítulos antes, numa alusão às desvantagens que a Fawcett sofreu durante os anos da ação judicial contra a DC.

O olhar faz o objeto. Se seu olhar for simples, a coisa olhada será simples; se a olha com grandiosidade, grandiosa ela será. Aos olhos simplórios, esse gibi da luta entre os dois mais poderosos heróis é um simples crossover de quebra-pau para atender a anseios de fanboys. Aos olhos analíticos, é um trabalho de crítica em metalinguagem que Gerry Conway, Rich Buckler e Dick Giordano fazem em homenagem às batalhas judiciais das editoras dos respectivos personagens, algo muito mais criativo do que a mera luta, portanto, a revelar o excelente conhecimento de causa e de pesquisa histórica dos artistas.

A grandiosidade do evento na grandeza dos quadros

O crítico de quadrinhos tem de saber que os quadros que servem de painel para a arte sequencial de uma HQ não estão ali para conter as ilustrações, tampouco estão de qualquer modo e ao acaso. Os quadros, além de darem o ritmo da narrativa, possuem funções linguísticas e visuais semelhantes às câmeras de filmagem do cinema. Uma delas é compor a cena: se a cena é intensa, grandiosa, memorável, crucial, o quadro assumirá dimensão, enquadramento, angulação e enfoque à altura da importância dessa cena; se a cena não tem relevância ou é acessória à trama, o quadro se ajusta a isso. O recurso segue a mesma lógica de nossas emoções: quanto mais a cena que vivemos/testemunhamos é importante ou traumática, mais espaço ela tende a ocupar em nossa memória, em nossos afetos; quanto menos, menos nos ocupa o interior. Tem-se, portanto, que ao tamanho do quadro está associada a relevância da cena. Os desenhistas Rich Buckler e Dick Giordano elevam esse recurso às últimas consequências (para a época de 1978); praticamente todo o gibi é composto por quadros grandes, requadros dinâmicos, splashpages (páginas únicas ou duplas). As supermulheres são focadas como musas do cineglamour, em sintonia com a onda do sexyappeal da revolução sexual em vigor no tempo (as estrelas de Hollywood – e das HQs – não eram só lindas, eram agora um sexy symbol). Os super-homens são focados como divindades míticas, sexy symbols por excelência, seja cataclismando o chão, seja ferindo os céus; é que a consciência de que os super-heróis são os deuses em uma roupagem contemporânea começava a ganhar terreno na 9ª arte. E por que toda essa grandiosidade nos quadros? Porque, para os artistas, a batalha entre Capitão Marvel e Superman era a “batalha do século”, grandiosa nos tribunais, grandiosa nas emoções dos fãs, grandiosa na história dos personagens, grandiosa por entre os dois prodígios em combate; grandioso, portanto, deveria ser seu tratamento. É a prática da lição aqui deixada, “se seu olhar for simples, a coisa olhada será simples; se a olha com grandiosidade, grandiosa ela será”. E tem gente que diz que gibi antigo de super-herói não tem nada de sofisticado.

Show de imagens em quadros dinâmicos. Super-heroínas como ideal de beleza e sedução (com pernas de fora, sem o “mimimi” feminista), super-heróis de colante em sua mais perfeita forma física em splahspages monumentais.

Ps: Não perca a 4ª parte.

[1] Almanaque de Super-Heróis. Quando as Terras se Chocam. In. “Das cortes da justiça para os céus do mundo: a batalha do século” (anexo). Rio de Janeiro: ed. EBAL, 1980, p.67.

[2] Extraído de SMITH, Zack. An Oral History of DC’s Captain Marvel/Shazam: The Lost Years (parts I-III). In. Newsarama (agosto de 2017). Heros Invictus (outubro de 2010). Grandes Batalhas dos Quadrinhos: Super-Homem versus Capitão Marvel, 2ª Parte. Comentários de Sandro Marcio Moreira.

[3] Como hoje é sabido, Fred MacMurray foi, de fato, o modelo de inspiração para a fisionomia do Capitão Marvel assim como a atriz Judy Garland para a Mary Marvel.

[4] Op. cit. Almanaque de Super-Heróis.

[5] Op. cit. Heros Invictus (outubro de 2010).

[6] Extraído de Terra Zero. [Estação WHIZ: Team-Up] “As Brigas do Superman com o Capitão Marvel no Tribunal” (dezembro de 2012). Redação Multiverso. “DC Comics vs. Fawcett: a batalha judicial” (março de 2017). FERRI, René. “O mais poderoso mortal do mundo” (anexo). In. SHAZAM! O Mais Poderoso Mortal do Mundo nº 14. São Paulo: ed. Nova Sampa, coleção Invictus, pp.3-4, 63-64.

Wagner Ávlis

Crítico de histórias em quadrinhos, membro da Academia Maceioense de Letras, articulista e professor de língua portuguesa.