Todo dia a mesma noite Arrebatadora minissérie sobre o incêndio na Boate Kiss
Quando a jornalista mineira Daniela Arbex lançou o livro “Todo dia a mesma noite” no ano de 2018, relatando com riqueza de detalhes os eventos relativos ao incêndio da boate Kiss, pensou-se que aquele seria o registro definitivo da tragédia de Santa Maria e que por mais que surgissem outros projetos com o mesmo viés, nenhum deles teria condições de se comparar à obra de Arbex, que por sinal faz uma pequena ponta em um dos episódios.
Entretanto, a série homônima lançada pela Netflix no mesmo ano em que a tragédia completa uma década, se não supera a obra em que se baseia consegue ao menos dar contornos mais nítidos não apenas à tragédia que ceifou abruptamente a vida de 242 jovens, como também ao sofrimento dos familiares, o recomeço dos sobreviventes e a luta pela punição de todos os responsáveis.
A série que conta com 5 episódios inicia-se no fatídico 27 de janeiro de 2013 em Santa Maria no Rio Grande do Sul, cidade que possui uma considerável população jovem por abrigar várias universidades em seu território. Nesse ambiente jovial e descontraído as casas noturnas da cidade constituem naturalmente um grande ponto de encontro de estudantes, e dentre elas uma das mais tradicionais era a boate Kiss.
Durante a realização do show da banda Gurizada Fandangueira, que teve seu nome trocado na série, o revestimento acústico do teto é atingido pelas faíscas de fogos de artifício imprudentemente acionados no interior da boate e em muito pouco tempo o ambiente que proporcionava diversão ao público, tornou-se palco de uma desesperada corrida pela sobrevivência.
As cenas do incêndio no interior da boate são extremamente realistas e nos dão a exata noção do nível de desespero das pessoas que tentavam buscar alguma saída num ambiente superlotado, escuro, e cujo simples ato de respirar revelava-se um grande desafio em um local fechado, sem saídas de ar e tomado pela fumaça. Particularmente nessa cena a diretora Júlia Rezende mostrou grande habilidade ao conseguir reproduzir com maestria a precisa descrição do ambiente de caos realizada por Daniela Arbex em sua obra literária.
Em um ambiente de guerra, como poderia ser descrita aquela madrugada de 27 de janeiro de 2013 em Santa Maria, a rápida ação de bombeiros, policiais, médicos, enfermeiros e voluntários foi o que impediu que a tragédia na boate tivesse um número ainda mais elevado de vítimas fatais, mas o despreparo naquela situação sem precedentes e o desespero em salvar o maior número de vidas no meio do mais absoluto caos cobrou um preço alto daqueles que pagaram com a própria vida por terem inalado uma quantidade descomunal de fumaça tóxica.
Superado o evento trágico em si a série foca em mostrar como pais e sobreviventes lidam com o sentimento de luto e ainda tentam buscar forças dentro de si para impedir que a morte de 242 jovens fique impune, e é justamente a partir desse ponto, lá pelo segundo episódio, que a série mostra a sua força.
A dor dos pais obrigados a viverem sem a presença dos filhos, arrancados violentamente de suas vidas, é algo por si só extremamente doloroso, mas esse sentimento aliado à revolta, frustração e impotência tornam-se palpáveis pelo público devido às incríveis interpretações de Paulo Gorgulho, Bianca Byinngton, Leonardo Medeiros, Débora Lamm e Thelmo Fernandes, que apresentam atuações tão convincentes e comoventes que lhes possibilita criar uma forte conexão com o público, mesmo em uma série com duração tão reduzida.
A produção apurada é outro grande acerto do programa, que conseguiu não apenas replicar à perfeição o cenário da boate e os ambientes hospitalares e forenses frequentados pelos personagens como também reproduziu com grande realismo (até demais para alguns, eu diria) as queimaduras e cicatrizes nos corpos dos sobreviventes.
A série funciona como um memorial às vítimas da tragédia de Santa Maria, fortalece a luta das famílias contra uma atrocidade ainda impune, e tece severas críticas ao nosso sistema acusatório (representado pelo Ministério Público), à morosidade dos trâmites processuais (Judiciário) e ao emaranhado de leis que favorece o criminoso e protege o acusado em detrimento do cidadão de bem. É entretenimento que gera reflexão, espetáculo que põe o dedo a ferida e a dolorosa lembrança de uma tragédia que não pode mais se repetir.