Críticas

Crítica – Raquel 1:1 (2023)

Raquel 1:1” é um filme que exemplifica um novo momento do desenvolvimento recente do cinema brasileiro. Ainda que não seja perfeito, o filme avança em uma direção que os filmes de terror nacionais podem explorar de maneira enorme, mesclando tropos conhecidos do gênero com a cor local. Não por menos, o filme conquistou elogios em festivais internacionais como no South by Southwest (SXSW) de 2022 e no 37º Festival Internacional de Guadalajara, no México, além de outros festivais na Europa

O filme segue Raquel, uma jovem que encontra apoio em sua fé cristã após um evento traumático. Ela se muda para uma nova cidade e se junta a uma igreja local, onde acredita ter um chamado divino. Enquanto embarca em uma jornada espiritual acompanhada pelas meninas da igreja que apoiam sua visão, pouco a pouco vê-se diante da necessidade de lidar com seus traumas internos a medida em que passa a ser atacada por parte da cidade.

Um bom terror

Raquel

Desde as primeiras cenas, o filme se mostra parte integrante do terror contemporâneo, embora o expectador casual não veja nada de terror aqui. O texto é sutil, assim como o texto cinematográfico, mas os temas do gênero estão lá. Temos a câmera indiscreta que filme as garotas na cachoeira e o corte seco diante do mistério de uma caverna sombria. O roteiro bem elaborado convida o espectador a questionar as motivações do protagonista, permitindo que a descoberta do seu passado seja lenta e gradual conforme o filme vai se tornando mais tenso. Também vai inserindo aos poucos elementos que vão nos confundindo sobre o que no filme é ilusão e o que é realidade.

O filme trabalha temas como o conservadorismo que atinge as mulheres com sua violência e o fanatismo religioso e a descoberta feminina. Claro que esses temas já tiveram seu filão no cinema de terror, mas aqui são levados em conta especialmente os aspectos próprios da cultura brasileira. Temas como religiosidade tóxica, misoginia e agressão aparecem em tela com uma infeliz familiaridade para uma sociedade que se acostumou com isso na vida real. E por isso mesmo, consegue também ter uma função catártica no fim. A direção de Mariana Bastos evoca  as emoções certas nos momentos certos. O elenco, especialmente Valentina Herszage como Raquel, entrega excelentes atuações que transmitem o trauma, a intensidade e a dor da personagem.

Um fim que não se explica

É certo que muitos dirão que a falha do filme se encontra na conclusão. Fato é que com outros caminhos, a conclusão poderia ter sido melhor desenvolvida, entregando respostas e ligando pontas soltas que, no final como foi apresentado, ficaram desamarradas.

No entanto, como obra mística, que vai fundo na temática das profecias e da revelação, não é ruim que algumas coisas fiquem nubladas. Se aceitamos a opacidade de certos livros sagrados, vemos a mesma natureza em “Raquel 1:1”. Além disso, mesmo que torne o fim menos acessível, pela primeira vez vejo no cinema nacional uma aproximação de uma obra que se foca na bíblia e valoriza seu potencial de horror cósmico.

Ainda assim, acredito que mesmo quem se incomodar encontrará aqui é uma obra marcante que mereceu reconhecimento internacional. Por fim, “Raquel 1:1” levanta questões instigantes sobre o papel da religião na sociedade destacando a importância das vozes das mulheres.