Quadrinhos

Crítica de HQ | Com a Palavra Mágica, SHAZAM! (1ª parte)

No clima de aquecimento para o Capitão Marvel (Shazam) nas telas de cinema, que tal aprender como é uma crítica quadrinística com uma HQ do Mortal Mais Poderoso da Terra?

Ano que vem sairá nas telonas Shazam!, de David F. Sandberg, tendo Asher Angel como o garotinho Billy Batson, e Zachary Levi como seu alter-ego, o Capitão Marvel. Sem entrar em grandes contextos do super-herói, a relevância desse personagem foi tão grande para o mundo da pop art que sua influência ainda ecoa em nosso tempo. A semelhança com o Superman, a fantasia duma palavra mágica que a tudo transforma, o primeiro filme live-action de um super-herói (1941), o rockabilly e o traje azul de Elvis Presley baseado no Capitão Marvel Jr., a banda de rock carioca Dr. Silvana & Cia. (baseada no vilão do Capitão Marvel), a expressão regional “diacho!” usada nas HQs, são algumas heranças da influência do Shazam. Nada mais justo que devolver a ele o destaque nos quadrinhos, lugar onde reinou soberano por toda a Era de Ouro (1938-1956), chegando a vender 14 milhões de cópias/ano, números muito além do Superman. Em vista desse glamour esquecido e do que há de vir no cinema, dedicaremos uma crítica simples a quatro edições do Capitão Marvel, uma da década de 1940, outra de 1950, a terceira de 1970, a última duma revista mais contemporânea. A daqui é a primeira, um conto de 1947 publicado pela ed. EBAL (Edição Extra Super-Heróis nº 15. Com A Palavra Mágica SHAZAM! “Quando as Duas Famílias se Defrontam”. Rio de Janeiro: ed. EBAL, fev. 1976, 64 pgs.), com roteiro de Bill Parker, desenhos de Charles Clarence Beck e Pete Costanza.

Família Marvel vs. família Silvana

O conto é um conflito entre duas famílias, a Família Marvel (Capitão Marvel, Mary Marvel, Capitão Marvel Jr.) e a família Silvana (Dr. Silvana, seus filhos Geórgia e Silvana Jr.). A família de vilões, com aspirações megalômanas, quer o governo de todos os países sob forma de monarquia absoluta. Ciente de que a Família Marvel é seu entrave, o plano mínimo para se chegar ao geral é unir três elementos químicos – o prótio, o neutrônio, o eletrônio – capazes de bloquear a atmosfera terrestre dos raios que transmutam as crianças Billy Batson, Mary Batson, Freddy Freeman na Família Marvel. Para tanto, a família Silvana precisa embarcar numa viagem no tempo, a fim de obter os elementos, enquanto a Família Marvel permanece em seu encalço sem saber das reais intenções da perseguição. O Dr. Silvana continua no presente, perseguido pelo Capitão Marvel; Geórgia Silvana volta ao passado, sob o cerco de Mary Marvel; Silvana Jr. parte para o futuro, com Capitão Marvel Jr. atrás de si.

A família Silvana e o plano da viagem no tempo.
O olhar do crítico sabendo olhar o contexto

Um crítico de quadrinhos tem de afastar qualquer olhar viciado contra a obra. O vício mais comum entre alguns leitores e resenhistas é tender a interpretar tudo com a mentalidade do seu tempo. Exemplo claro disso é a interpretação dos textos bíblicos como se fossem tratados científicos de Biologia, História, Astronomia, o que, por essa óptica, termina por invalidar os significados reais do texto sacro. No caso dum gibi antigo, a tendência é olhá-lo como coisa tosca, infantiloide, sem valor estético, pois o olhamos com os critérios dos gibis atuais. O fato é que, se o artista for bom, em qualquer peça dele existirá valor estético. A missão do crítico é identificá-lo, dissecá-lo e apresentar ao público. Um resenhista crítico que quer sair da zona de conforto das obras atuais pode começar se perguntando: “Por que ou para quê o tema da história é esse?”. O por que é o motivo, o para quê é a finalidade.

O por que do conto Quando as Duas Famílias se Defrontam”, do Shazam, é a ideia de família da época, no caso, a família do pós-guerra, em vias de fragmentação da estrutura tradicional por conta das baixas no front. Antes das duas grandes guerras, a família traditiva era a maior autoridade dentre todas as autoridades. Nas Américas, a tradição privilegiava a família como beneficiária da vida social, num mundo em que as relações pessoais importavam mais do que as leis, do que as instituições públicas; diante de negócios, política, propriedade, não podia haver relação mais forte do que o parentesco, o parente vinha antes dos partidários, dos irmãos de fraternidade, da nobreza, do clero, do Estado. A guerra instituída alterou isso. O que a equipe criativa desse conto do Capitão Marvel enfatiza é o retorno da importância da família, aqui ilustrado pelo confronto do protagonista (e sua família) contra o antagonista (e sua família), que, dentro da cronologia do personagem, já eram traditivos rivais. Já o para quê do conto é transmitir uma mensagem de que a unidade da família é lugar de segurança e uma força contra a qual pouca coisa é capaz de sufocar. Muito antes das mensagens sobre família do Quarteto Fantástico do Jack Kirby e Stan Lee, da batfamília de Sheldon Moldoff e superequipes como Liga da Justiça e X-Men, as HQs do Capitão Marvel já abordavam temas típicos de núcleos familiares, como desemprego, subsistência, conflito entre membros, deficiência física (no caso de Freddy Freeman, o Capitão Marvel Jr.), representatividade feminina, união. Apesar de a Família Marvel completa ser composta por membros adotivos, agregados, amigos, e de Billy Batson ser o mais novo dos membros, todos se veem como familiares, e, em especial, Billy é visto por todos como um pai protetor, cabeça da família e, quando transformado, um capitão em literal. A família Silvana não é desunida por ser “do mal”. De igual forma, seus membros são unidos por laços de afeto, repeito, admiração, obediência, tendo Dr. Silvana uma presença de pai e líder ao mesmo tempo, para o qual todos devotam sua lealdade. Não importa de que lado estejam, Capitão Marvel e Dr. Silvana projetam a figura ideal de pai, e seus membros a de família, conceitos e estados que transcendem posições ideológicas e portanto sendo mais importantes do que elas.

Chefes de familiação unida: Capitão Marvel e Dr. Silvana entendidos como pai e líder tático cada qual por sua família.
Lendo para além do desenho e do balão

Esclarecido o diálogo que o gibi antigo faz com o mundo real – que resultará no contexto de época –, é hora de o analisador ler entre as letras dos balões e os desenhos das quadrículas que, aos olhos do leitor-consumidor comum, passa despercebido. Trata-se da estrutura de composição e os efeitos estéticos que surte na obra, coisas que fazem uma obra ser, de fato, artística. Há quem diga que isso não existe num gibi dos primórdios da indústria, onde, supostamente, tudo era feito para crianças, de modo improvisado e descomprometido. Quer saber se é verdade? Continue comigo. Conte a quantidade de quadrículas nestas duas páginas tomadas a esmo.

7 quadrículas, confere? Pois bem, todo o conto no gibi apresenta 7 quadrículas em cada página. Esse número 7 é mais um símbolo do que uma quantidade, isso porque, na mitologia do Capitão Marvel, há diversos elementos da crença judaico-cristã, do paganismo grego, da alquimia, do ocultismo. Um deles são os Sete Pecados Capitais – no mundo de Shazam ditos “os Sete Inimigos Mortais do Homem” –, Inveja, Gula, Avareza, Luxúria, Orgulho, Preguiça, Ira, todos personificações carrancas, com vida e corpo próprios. Oposto a eles estão as “Sete Virtudes” do cristianismo, Prudência, Fortaleza, Temperança, Justiça, Fé, Esperança, Amor. Sugere ainda, no caso do budismo, a contraposição dos 7 pecados capitais: Caridade (opõe-se à inveja), Temperança (opõe-se à gula), Generosidade (opõe-se à avareza), Castidade (opõe-se à luxúria), Humildade (opõe-se ao orgulho), Diligência (opõe-se à preguiça), Paciência (opõe-se à ira). Temos então dois blocos com 14 aspectos humanos, 7 do mal, 7 do bem. A Família Marvel representa o segundo bloco, enquanto a família Silvana o primeiro. O 7 no mundo da magia também sugere a numerologia cabalística: os 4 elementos da natureza mais a ideia de Trindade. As famílias Marvel e Silvana teriam, assim, um pouco da imanência, um pouco da transcendência. De uma forma geral, C.C. Beck e Pete Costanza, desenhistas do conto, com a numeração 7 das quadrículas, querem transmitir um ritmo de leitura uniforme que tem por simbologia as virtudes da família. O crítico não pode desprezar isso, julgando que é reles coincidência toda a história ter sido ilustrada com 7 quadros. Alguma função isso tem, e a mais plausível é a apresentada.

O ritmo da quadrícula é o ritmo das emoções do leitor

Assim como na prosa e na poesia, a narrativa gráfica sequencial possui dois ritmos: o da trama e o de leitura. O da trama são instabilidades entre o alívio, a tensão e o clímax dos acontecimentos; o de leitura é o modo como o leitor acompanha a narrativa. O ritmo da trama neste conto do Shazam, além de se dá pela indissolúvel junção entre imagem e texto, se dá também por grafismos, recursos visuais que representam o estado dos personagens. O grafismo de C.C. Beck e Pete Costanza me parece ser um tanto moderno para a época, na qual o costume, devido às limitações tecnológicas (afinal estamos falando de 1947!), eram a hachura, as retículas, o grafismo traçado. Beck e Costanza já empregavam a silhueta e a cor de atmosfera, como se vê abaixo.

Cor de atmosfera (1ª imagem), silhueta (2ª imagem).

A cor de atmosfera é quando o cenário some e toda a composição do quadro fica monocromática. Essa técnica não busca usar as cores para representar a cor real dos objetos e sim representar estados de espírito dos personagens, por isso a tensão da cena com Dr. Silvana de pistola em punho está representada pela atmosfera vermelha. Já a silhueta é um recurso de P&B aplicado ao assunto do enfoque; some no escuro o que se quer desfocar, realça-se em cores o que se quer focar. Na cena com o Capitão Marvel Jr., os personagens e o cenário de fundo estão em silhueta, enquanto a mesa com os tubos de ensaio está colorida. Em HQs, cor de atmosfera e silhueta pintam mais do que a cena, pintam o tom da cena, surtindo os efeitos semelhantes de tensão que a trilha sonora provoca nos filmes. Agora, falando do ritmo de leitura deste conto, tem-se o clássico “ritmo-em-Z”. Observemos.

O ritmo-em-Z é a comum leitura ocidental da esquerda para direita aliada ao direcionamento dos quadros de cima para a diagonal, formando um “Z” abstrato. Nos bons desenhistas de quadrinhos esse “Z” não é dado por setas, mas indicado pela postura ou pelo posicionamento dos gestos, do corpo ou do cenário dentro de cada quadro, orientando o leitor pelo percurso previamente desenhado a ser lido, sem que o leitor se atrapalhe por onde deve ler. Atentemos para o seguinte aqui: no 1º quadro o Dr. Silvana (de azul) está se voltando para o quadro seguinte; no 2º, tanto o braço de Silvana quanto Billy, Mary e Freddy, está voltado para o quadro de baixo; neste, Billy, Mary e Freddy se dirigem ao 4º quadro (o do meio); em seguida, Dr. Silvana parece olhar para o 5º quadro; aqui, Billy, Mary e Freddy induzem o leitor a seguir para o 6º quadro; nesse 6º, Billy Batson tem o corpo direcionado ao 7º quadro, e, neste, seu close apontando para o próximo na página seguinte. Eis os “Z’s”. Agora juntemos esses dois ritmos descritos, o da trama e o de leitura, e teremos a dramaticidade certa nas cenas certas. Nessa página da imagem, a cena é a família Silvana humilhando a Família Marvel, impedida de se transformar, como se esta fosse animais de caça; os Silvanas são os predadores, os Marvel são a presa. Os dois ritmos vão regulando a emoção do leitor, ora tensionando-a, ora afrouxando-a, ora ampliando-a, ora estreitando-a, isso tudo já dentro dos próprios quadros, neste esquema:

 E por que será que os quadros do meio ficaram estreitados, tensionados e portanto mais lentos e mais tensos? Porque são os que justamente enfocam o ritmo de Freddy Freeman, que, destransformado do Capitão Marvel Jr., é um simples garoto deficiente da perna a usar moletas. Por sua vez, os últimos quadros voltam a se alargar (e portanto a relaxar a emoção do leitor), porque Freddy e os outros se esconderam e estão em repouso. Digam se não é coisa de engenhosidade artística?! Por fim, notemos esta página:

É o mesmo esquema do quadro que mencionei antes: LARGO/FROUXO = RÁPIDO/MENOS TENSO → ESTREITO/TENSIONADO = LENTO/MAIS TENSO → LARGO/FROUXO = RELAXADO E MENOS TENSO. Os três primeiros quadros estão compostos em forma de grid, enquanto os dois subsequentes em forma de cascata, estreitando-se mais e, com isso, aumentando a tensão para um clímax mórbido; é Billy Batson quem o prevê: “Diacho! Vai nos cortar a goela!”. Propositalmente o desenhista interpõe um quadro isolado com close em Dr. Silvana, cortando a cena anterior sem lhe dar sequência. O efeito de significância disso, para o leitor, é o de segurá-lo pela tensão no ponto de clímax e fazê-lo imaginar – por antecipação – a cena macabra: três pré-adolescentes sendo degolados, como animais de abate, um ao lado do outro, sem chance de defesa, agonizando e se debatendo em hemorragia até a morte. Mas aí, no retorno à cena de tensão, nos dois últimos quadros, o leitor é frustrado na sua expectativa com uma reviravolta positiva, aí então relaxa, fica menos tenso e se prepara para o próximo plot twist antecedido por uma reticência e pelo fim da página. (E ainda vem gente dizer que gibi antigo de super-herói não tem nada de sofisticado…).

Isso sim é segurar o leitor pelos olhos – pela imagem e pela palavra mágica, SHAZAM!

Ps: Não percam aqui a 2ª parte.

Wagner Ávlis

Crítico de histórias em quadrinhos, membro da Academia Maceioense de Letras, articulista e professor de língua portuguesa.