Crítica | A Flor do Buriti
Exibido em mais de 100 festivais ao redor do mundo e vencedor de catorze prêmios, “A Flor do Buriti”, dirigido por Renée Nader Messora e João Salaviza, estreia nacionalmente nos cinemas nesta quinta-feira (4), com distribuição da Embaúba Filmes. Este filme destaca um dos temas mais urgentes da atualidade: a luta dos Krahô pela terra e as diferentes formas de resistência implementadas pelas comunidades indígenas no Brasil.
Contexto e Temática
Em 2018, com o filme “Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos“, os diretores documentaram o povo Krahô, mostrando um modo de vida ameaçado pela modernidade. Em “A Flor do Buriti”, esse estudo é ampliado, examinando o conflito ideológico e geracional dentro da comunidade e explorando a relação dos Krahô com a terra, uma conexão elaborada pela comunidade ao longo dos tempos.
As violências sofridas nos últimos 100 anos impulsionaram um movimento de cuidado e reivindicação da terra como bem maior, essencial para a dignidade e preservação cultural da comunidade e o filme atravessa os últimos 80 anos dos Krahô, destacando um massacre ocorrido em 1940, no qual dezenas de pessoas foram assassinadas por dois fazendeiros da região. Ao ver o filme, é sensível notar como este evento traumático continua a reverberar na memória das novas gerações.
Produção e Imersão
Durante quinze meses, a equipe de filmagem imergiu em quatro aldeias Krahô, criando uma espécie de genealogia da comunidade. Este processo foi encarado como um imenso ritual, onde elementos documentais se mesclam com narrativa, música e cânticos, capturando a vida de um povo que constantemente enfrenta ameaças à sua existência. Os próprios Krahô participaram de diversas etapas da produção, enriquecendo o filme com sua perspectiva autêntica.
A articulação do povo Krahô é fundamentada em uma reflexão contínua entre o passado e a ligação à terra de Krahôlandia, em Pedra Branca, no estado do Tocantins. A palavra “Buriti” representa a “árvore da vida”, uma espécie rica em vitaminas e aplicações medicinais, simbolizando a renovação e a resistência deste povo. O filme celebra a vida e a resistência dos Krahô, evidenciando um cinema que se faz vivendo e que se vive filmando, um aspecto intimamente ligado à vida dos diretores e de sua filha, Mira.
Assim como seu antecessor, o mais recente filme de Salaviza e Nader Messora recebeu um prêmio especial do júri na seção Un Certain Regard de Cannes, designado para todo o elenco e equipe do filme. Essa intrigante qualidade de transição entre os papéis na tela e fora dela é um dos pontos mais interessantes da produção.
Estrutura e Narrativa
A história se concentra em Hyjinõ e na decisão de Patpro de fazer com que as vozes ancestrais do povo indígena sejam ouvidas. A participação em uma conferência em Brasília destaca a necessidade de chamar a atenção para as demandas das comunidades indígenas em todo o Brasil. Durante a filmagem, em película de 16mm, foram registrados desafios como os ataques durante o período do Bolsonarismo, a desflorestação da Amazônia, o conflito com o agronegócio, o tráfico de animais e a propagação da Covid-19.
Através dos olhos da filha de Patpro, o filme recria o trauma do massacre de 1940 e o impacto da ditadura militar na década de 1960. Esta perspectiva oferece uma visão da resiliência do povo Krahô e sua ligação com ritos ancestrais, conectando o passado com o presente e enfrentando as ameaças do colonialismo e do capitalismo atual. A ameaça “cupé”, termo que descreve o homem branco colonizador e usurpador, é evocada e motiva a reivindicação do direito à existência dos Krahô.
Estilo e Impacto
Para Salaviza e Nader Messora, um grau de mística poética é fundamental, já que o senso de realidade desestabilizado do filme funciona para conjurar as mitologias e tradições de narrativa oral dos Krahô sem alterá-los ou exotizá-los. Embora o filme tenha sido filmado ao longo de 15 meses em quatro aldeias diferentes, a impressão geral é de uma cultura antiga consistente, perturbada pela crescente inquietação política de seus membros mais progressistas.
A mais vocal entre eles é Ilda Patpro Krahô, uma mãe e feminista que teme que, diante das políticas agressivamente voltadas para os negócios do governo Bolsonaro, seu povo esteja apenas enterrando a cabeça na areia. Patpro defende a participação em uma conferência nacional e marcha de protesto para povos indígenas em Brasília, a capital, não apenas por seu valor simbólico, mas para formar alianças com outras tribos vulneráveis.
A mais assustadora dessas memórias é retratada em uma reconstituição brutal do massacre de 1940. Encenada com frieza de arrepiar a pele, essa cena captura tanto a coragem do momento quanto o desgaste visual do passado. A ansiedade indígena prova ser hereditária, mesmo que outras tradições sejam perdidas.
No dia a dia, Hỳjnõ deve defender sua tribo e seu ambiente de pequenas violações e microagressões. Junto com outros anciãos, ele aborda caçadores furtivos que estão despojando a região de sua vida selvagem nativa, enquanto um grupo de crianças Krahô deve suportar olhares fascinados de uma classe de crianças da cidade.
Conclusão
A Flor do Buriti é um filme deslumbrante e urgente que destaca a luta dos Krahô pela terra e a resistência das comunidades indígenas no Brasil. Com uma produção imersiva e a participação ativa dos próprios Krahô, o filme oferece uma visão autêntica e poderosa de sua história e resiliência. Este é um cinema que não apenas documenta, mas vive e celebra a vida e a resistência de um povo.