O filme SHAZAM já teve divulgadas sua sinopse e várias fotos do elenco em clima de descontração. E é nesse mesmo clima que a série de críticas doCampeão da Pedra da Eternidade chega aqui ao fim.
Após várias (e fracas) tentativas dos editores para repotencializar Shazam entre crossovers e animações, no fim de 2011 a DC Comics empreendeu uma iniciativa até então experimental em toda a sua linha de HQs de super-heróis: um “resetar” do início da cronologia, uma reformulação ou reboot chamado “Os Novos 52”, que aludia aos 52 universos paralelos e suas consequências temporais depois duma saga protagonizada por Flash chamada Flashpoint. Como todos os artistas agora tinham a missão de recontar as origens do panteão DC para uma nova geração de leitores da nova década (a de 2010), o Capitão Marvel foi incluso no projeto sob os trabalhos da dupla Geoff Johns e Gary Frank, com a nobre intenção de torná-lo menos impopular, sendo – novamente – familiarizado ao mainstream dos personagens mais conhecidos, bem como ser conhecido pelo novo público e quem sabe protagonizar uma revista própria. Novamente, não deu certo. Nos EUA Shazam foi sendo publicado ao fim da revista Justice League até a nº 20 (julho de 2013) quando então fora cancelada; no Brasil também, porém o cancelamento veio antes, em março de 2013. Um ano após Os Novos 52, a Panini Brasil lançou encadernados capa-dura dessa fase, e o de SHAZAM foi um deles, objeto dessa última crítica. A fase dos Novos 52 do Shazam, ao que tudo indica, será a que mais exerce influência sobre o filme que está por vir.
Desconstruindo a mitologia do Relâmpago Vivo
O capa-dura em questão é SHAZAM – Com uma Palavra Mágica…. Os Novos 52. Roteiro de Geoff Johns, desenhos de Gary Frank. São Paulo: ed. Panini, 2015, 200 págs. Uma nova origem reconta como o adolescente de 15 anos Billy Batson é vocacionado a ser o novo guardião da Pedra da Eternidade. Billy é um pequeno delinquente órfão de pai e mãe sob a guarda tutelar do Estado, até que é adotado por um casal detentor dos direitos de guarda de mais cinco adolescentes, seus futuros irmãos adotivos. No Egito, o cientista Dr. Silvana garimpa um sítio arqueológico a fim de escavar a Pedra da Eternidade, quando, sem saber, invoca o segundo Campeão da Magia, porém renegado, Adão Negro, que agora busca matar o primeiro Campeão para se apossar da Pedra da Eternidade: o Mago Shazam. Ciente disso, o Mago procura, às cegas, um sucessor que faça frente à ameaça do Adão Negro, sem sucesso. É quando o menino Billy Batson, numa tentativa de fuga da casa dos pais adotivos, surge diante do Mago, e este pede para que ele pronuncie uma palavra mágica – “SHAZAM!” –, e eis que o terceiro Campeão da Magia vem à tona.
Penúltima lição ao crítico: à crítica é necessário o spoiler
Não há crítica de arte sem spoiler. Para se tecer uma crítica analítica se parte de dois pressupostos: a leitura integral da obra pelo crítico e o perscrutar de sua estrutura composicional. É impossível analisar essa estrutura sem revelar partes significativas do enredo, já que, invariavelmente, essas partes significativas estão imbricadas na estrutura, e, portanto, são indispensáveis para o entendimento da funcionalidade da obra como um todo. O trabalho crítico é uma metonímia: do todo se toma uma parte para da parte compreender o todo, e essa parte – crucial, muitas vezes sendo spoiler – não pode deixar de ser exposta. Uma crítica profissional que não tenha spoilers não é uma crítica, é outro gênero textual, menos uma crítica. Com o advento das mídias digitais, para se evitar o temido spoiler, muita gente tem optado por duas alternativas: classificar sua crítica como “sem spoiler” ou só ler uma crítica depois de assistir ao filme ou de ler a HQ. Porém esclareço que “uma crítica sem spoiler” é, na prática, uma resenha, e não uma crítica; e, da mesma sorte, uma crítica não é feita somente para críticos, para leitores antigos e entendidos ou para os que já apreciaram a obra; a crítica também deve ser feita visando ao público geral, para velhos e novos públicos e para os que nada viram a respeito; nesse caso, ela servirá para provocá-los a admiração, a curiosidade, por fim levá-los a consumir a obra. Seja como for, a crítica é sempre o exercício da promoção da obra, do artista e do público.
Última lição ao crítico: fazer crítica não é dar a sua opinião
Os gêneros que trabalham com a apreciação de uma obra artística e/ou científica são a sinopse, o resumo, o comentário, a resenha, a resenha crítica e a crítica. A sinopse é o mais curto e o mais superficial de todos; é um breve relato que reúne os aspectos essenciais da obra, como a gente vê no cartaz do filme ou no verso dum livro. O resumo é uma síntese impessoal e imparcial da obra para se transmitir as informações importantes dela, com poder de síntese, objetividade e clareza; geralmente é o que os professores colegiais exigem dos alunos. O comentário são apontamentos de um interlocutor da obra (assistida, lida, ouvida), deixando aí suas impressões, compreensões, opiniões; Averróis, o famoso filósofo árabe, foi o grande comentarista das obras de Aristóteles, e St° Agostinho de Hipona o mais célebre comentador da Bíblia. A resenha é uma exposição descritiva; ela descreve a obra de modo imparcial e mais aprofundado, fazendo correlações entre o seu conteúdo e um outro, fora dele, mas que tem afinidade; em geral é o que se pede nas faculdades. A resenha crítica só tem a diferença de permitir o juízo de valor, a opinião, as ideias fundamentadas do resenhista, podendo até refutar/reprovar a obra, e é isso que mais se tem em blogs, sites, no Youtube, com o pseudônimo de “crítica sem spoiler”. A crítica, o gênero textual mais extenso e profundo, reúne todos os gêneros anteriores de modo distribuído, só que seu objetivo não é só a indicação, a descrição e as impressões da obra; acima de todos esses objetivos está o de decompor a estrutura técnica de composição da obra, analisar a forma e o conteúdo, e o de problematizar e abstrair seus significados diante do tecido social. Por isso, muitas vezes, a crítica é chamada de “crítica analítica”, porque a análise e a reflexão são suas predominantes características. Só que, para isso, é indispensável conhecer mais do que o objeto em foco; antes de conhecer o objeto é indispensável conhecer a teoria, o escopo teórico sobre como fazer uma crítica, e isso não se obtém por intuição, inspiração, senão pelo estudo específico sobre o procedimento nas artes.
O “Shazam” do reboot Os Novos 52 e a crítica
Particularmente falando, eu não gosto do que fizeram ao Capitão Marvel nos Novos 52. Eu poderia aqui fazer um listão de problemas composicionais, violação do cânone do personagem, vazios lógicos e incoerências da obra que fundamentam minha reprovação, a começar pelo fato de o Capitão Marvel ser essencialmente a personificação do bem – origem e finalidade da magia –, portanto jamais ele poderia ser retratado como um personagem de zona cinza; à exceção de muitos campeões, Shazam ou é preto ou é branco, e, nesse caso, é branco. No entanto, o que eu disse antes? “Fazer crítica não é dar a minha opinião”, portanto, interessa ao público não o que eu acho, e sim o que a obra diz e como ela diz. O crítico não é crítico porque analisa somente o que gosta; se é crítico é porque há de analisar qualquer obra, até as de que não gosta. Nessa direção, o crítico não precisa dissecar toda a obra em todos os seus aspectos; ele pode fazer um recorte, ater-se nele e analisá-lo tão-só. No caso de SHAZAM – Com uma Palavra Mágica, o recorte que faço para vocês não é nem do plano roteirístico, nem do plano gráfico, mas do aspecto social do quadrinho. Esse aspecto social é o tema que sempre lhe foi mais caro: a ideia de família.
No século XXI, onde noções (até antes fixas) de bondade, tradição, família e propriedade está cada vez mais sendo questionadas e remodeladas, um herói que sempre pôs a família em primeiro lugar, não importando de onde seus membros viessem, se eram seus parentes biológicos ou adotivos, se amigos ou agregados, tem seu legado resumido na frase do Mago Shazam: “Família é o que é, não o que deveria ser. Este é o seu feitiço secreto, seu poder definitivo” (p.76). Antes dessa frase, o adolescente Billy, por ser órfão, não nutria mais afeto por ninguém, exceto por um tigre de zoológico (o “Malhado”), última recordação da experiência familiar do menino, deixando-se levar pela malícia provinda da sobrevivência das ruas, fato que o aproxima da delinquência juvenil. Depois da frase do Mago, Billy passa a ser norteado pelo valor de família, não mais a nuclear e tradicional como na Era de Ouro, mas a família mista das novas modalidades que vêm surgindo neste século. Billy Batson, até então se sentindo um estranho dentro duma família composta de um casal heterossexual sem estar casado civilmente e de crianças adotivas de várias etnias e condutas, se vê agora não só como membro dela, mas como seu fiel protetor. A Família Marvel se expande, e ela passa a ser especial até mesmo quando é somente um agrupamento de simples adolescentes sem nada de extraordinário. SHAZAM – Com uma Palavra Mágica se mostra, desse modo, uma ode às novas formas de organização familiar e ao corrente lema da diversidade humana, uma característica singular que faz, de fato e de direito, justiça ao título de “super-herói”, porque o herói protege e salva sem distinção de pessoas; o herói é herói da humanidade – não importa de que modo ela se encontre ou esteja organizada – e não somente de uma parcela dessa humanidade.
Concluo aqui a série de críticas do Capitão Marvel. Foi ótimo dividir a magia dele com vocês. Se quiserem conhecer mais desse personagem, indico a Coleção Shazam, no Google+, do fã Rivison Delmondes, que muito me ajudou em alguns detalhes nessa série. Que a sabedoria de Salomão esteja com vocês!