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Crítica | O Eternauta (2025)

Em um mundo dominado pelo norte global, onde o desenvolvimento político e econômico equivale à expansão de sua cultura sobre o restante do planeta, a cultura latino-americana frequentemente ocupa um lugar de vulnerabilidade. É raro que, tratando-se de “alta cultura”, obras como O Segredo de Seus Olhos ou o recente vencedor do Oscar Ainda Estou Aqui recebam o destaque merecido.

Ainda mais difícil é alcançar o mesmo sucesso e reconhecimento nas produções de gênero, como o terror ou a ficção científica. Nesse campo (em que até mesmo gigantes estadunidenses, como os filmes da A24 ou os livros de Stephen King, raramente são exaltados por críticos e resenhistas) existe ao menos um grande clássico latino-americano que reúne o prestígio de ser uma obra-prima do gênero… e que ainda ousa ser uma história em quadrinhos.

Desculpe pela longa introdução, motivada, evidentemente, pelo desejo de falar da obra original antes de tratar de sua recente adaptação para a Netflix. 

Uma adaptação com potência visual, mas sem a densidade do original

Com Ricardo Darín no papel de Juan Salvo, a série toma emprestado certos tropos das atuais obras de catástrofe para atualizar o material original. A trama se passa em uma Buenos Aires isolada por uma nevasca capaz de matar em segundos qualquer um que a toque. O valor de produção é impressionante, com ruas desertas cobertas por neve letal e momentos marcantes, em que o isolamento e a morte se entrelaçam.

Para os fãs do gênero, isso já é um grande atrativo. Mas é preciso dizer: a série poderia ir além. El Eternauta, o quadrinho, é um diálogo intermediado entre duas visões opostas: o otimismo de Robinson Crusoé e o fatalismo de O Senhor das Moscas. Seu maior interesse não está em julgar as decisões tomadas por pessoas em situações extremas, mas em entender como essas decisões surgem (um verdadeiro olhar sobre a natureza humana).

E isso, claro, num país que (assim como o Brasil) teve sua história marcada por golpes de Estado, ambições autocráticas, exploração de povos originários e pela escravidão. Esse subtexto político desaparece na série. Em seu lugar, entram reflexões modernas, claramente influenciadas pela vivência da COVID-19 e por referências a guerras. No entanto, o peso simbólico da ditadura argentina se dilui.

Vale lembrar que Oesterheld e sua família foram vítimas diretas da ditadura. A série parece considerar isso difícil demais de explicar. Na verdade, tudo o que parece exigir uma contextualização mais profunda acaba suprimido. Com isso, perdem-se as sutilezas da escrita latino-americana.

Não me entenda mal: esta não é uma típica história de catástrofe hollywoodiana. Você não verá um herói com metralhadora em punho salvando o mundo de uma invasão alienígena (embora, sim, haja bastante tiroteio ao longo dos episódios). Ainda assim, a inclusão de uma trama de resgate (claramente pensada para engajar o público que não suportaria o ritmo mais contemplativo de um folhetim) compromete o tom da série.

O desfecho da temporada, assim como a decisão de dividir a história em blocos, é marcadamente comercial e enfraquece o impacto da narrativa. E, embora a direção seja competente e o elenco liderado por Darín (capaz de transmitir emoções intensas mesmo oculto atrás de uma máscara de proteção) entregue atuações sólidas, a série parece rendida a um formato narrativo completamente subordinado às fórmulas repetidas de uma indústria cada vez mais desgastada.

Quando a busca pelo universal apaga o local

Dessa forma, na tentativa de alcançar uma certa universalidade necessária para transformar a trama em um produto de mídia bem-sucedido, a produção sacrifica uma parte fundamental do espírito que a moldou, tratando apenas superficialmente o caldo cultural que produziu a obra original e que de El Eternauta não apenas um clássico da ficção científica, mas um clássico universal. Paradoxal, mas verdadeiro.

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