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Crítica | Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá

A vivência dos Maxakalli passa enormemente pelo canto e pela palavra. Não é pouco que sejam conhecidos como o “Povo do Canto”. é por isso que são conhecidos no Brasil pelo nome que leva sua língua, preservada entre os Tikmũ’ũn de Minas Gerais. Mas o nome que eles mesmos usam para se denominar, também guarda um poderosos significado, a combinação dos termos tihik, que significa homem, e mu’un, que tem o sentido de grupo e inclusão, representa muito mais este povo do que se pode imaginar ao evocar estereótipos sobre a existência indígena. A família é importante nas comunidades Maxakali, a própria comunidade é aquilo que mais importa e isso é nítido ao entender que se denominam apenas como “nós”.

Atualmente, o povo Maxakali vive em diversas regiões de Minas Gerais: nas aldeias de Água Boa (Santa Helena de Minas), Pradinho e Cachoeira (Bertópolis), Aldeia Verde (Ladainha) e em Teófilo Otoni. É nesta última cidade que tem início o documentário “Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá, dirigido por Sueli Maxakali, Isael Maxakali, Roberto Romero e Luisa Lanna.

O filme estreou na mostra competitiva do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro e agora chega aos cinemas, reunindo memória, identidade e resistência em uma narrativa profunda. A obra acompanha a jornada de Sueli em busca de seu pai, Luiz Kaiowá, de quem foi separada ainda bebê durante a ditadura militar. Não só um reencontro familiar, um filme trata-se de acompanhar uma reconstrução coletiva, atravessada por cantos sagrados, memórias e a força dos povos indígenas. Filmado em quatro territórios, três no Mato Grosso do Sul e um em Minas Gerais, o longa se estrutura a partir da escuta e da convivência entre os povos Tikmũ’ũn e Guarani Kaiowá.

Cinema indígena como cura e resistência

Desde o início da pandemia, a comunidade liderada por Isael e Sueli deixou a Aldeia Verde, em Ladainha (MG), em busca de um território onde suas crianças pudessem ter acesso a um rio, onde pudessem renovar seus ritos, plantar e construir suas escolas. No caminho, foram deslocados, enganados, forçados a deixar terras próximas a estruturas em risco de colapso. Desde então, suas lideranças têm levado a luta adiante: em festivais, universidades, bienais de arte e debates públicos. Desde 2010, têm trabalhado com cinema como forma de expressão e preservação de saberes ancestrais. Com filmes premiados como “Yãmiyhex: As Mulheres-Espírito” (2019) e “Nuhu Yãgmu Yõg Hãm: Essa Terra é Nossa” (2020), eles criaram uma filmografia única, onde o cinema não é apenas linguagem, mas ritual e cura. 

É o que nos explica Sueli, e também ao seu pai, em narrações nas quais apresenta sua família, sua casa e comunidade. E é assim, de fala em fala, de memória em memória que a história se consolida. O documentário rejeita a lógica da explicação racional e linear para oferecer em seu lugar uma experiência sensorial e subjetiva, onde as versões e as memórias têm mais valor do que a precisão factual. A montagem respeita o ritmo das falas, a duração dos planos e a multiplicidade de versões.

Reencontro, ancestralidade e cinema brasileiro plural

O reencontro entre Sueli e Luiz se dá após décadas de separação, simbolizando uma conexão entre povos e entre formas de narrar o mundo. A produção coletiva incluiu a participação de outros cineastas indígenas como Alexandre Maxakali, Michele Kaiowá e Daniela Kaiowá. Luiz Kaiowá, importante xamã guarani, viveu entre os Tikmũ’ũn por mais de 15 anos. Separado à força de sua filha pela Funai, ele foi reencontrado graças à chegada da internet nas aldeias e ao esforço político e afetivo de Sueli e de suas primas. A jornada até ele percorreu mais de 1.800 km, unindo territórios e saberes.

Falado em maxakali, guarani kaiowá e português, o filme traz as vozes e os cantos desses povos, além de apresentar suas lutas por território e respeito. É um esforço de sentido e forma, pois nos trás a memória de que no nosso país, existem muitas linguas diferentes, que não o português, e que merecem ser ouvidas. “Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá” é uma das expressões mais potentes dessa diversidade, nos fazendo ver mais uma vez a força do cinema indigena no país.

O filme conquistou o prêmio de melhor direção no 57º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro e uma menção honrosa na 14ª Mostra Ecofalante de Cinema Socioambiental.