Críticas

Racionais Mcs: Das ruas de São Paulo para o mundo – Grande acerto da Netflix

O maior grupo de rap do cenário nacional foi formado ao final dos anos 80 pelos amigos Mano Brown, Ice Blue, KL Jay e Edi Rock, que pretendiam levar aos jovens negros e pobres das periferias do país uma mensagem que funcionasse não somente como forma de expressão e entretenimento, mas que também fizesse pensar.
Com um nome inspirado no álbum Tim Maia Racional de Tim Maia, surgia o Racionais Mcs, grupo cuja trajetória é mostrada com riqueza de detalhes pelo excelente documentário do catálogo da Netflix “Racionais Mcs: Das ruas de São Paulo para o mundo.

Imagem: Divulgação

 

O longa que mescla depoimentos atuais do grupo com imagens de arquivo inicia-se focando nos inúmeros obstáculos enfrentados pelo quarteto de jovens da periferia paulista que sonhava em viver de música ao final dos anos 80. O início difícil do grupo que tocava em festas na comunidade com material improvisado e pouquíssimos recursos, embora não garantisse a dedicação exclusiva à música, ao menos servia ao propósito de unir o quarteto no missão de dar voz a uma população acostumada à repressão e à marginalização devido à cor da sua pele.
As mazelas vivenciadas pela juventude negra da periferia de São Paulo funcionavam como matéria-prima para as composições do grupo e no ano de 1990 algumas delas deram corpo ao álbum “Holocausto Urbano”, disco de estreia dos Racionais.

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Alguns anos mais tarde, Mano Brown e companhia tiveram o merecido reconhecimento de seu trabalho com o lançamento do disco “Raio X do Brasil”, em 1993, responsável por dar projeção nacional ao grupo e também por registrar os primeiros clássicos dos Racionais como “Homem na Estrada” e “Fim de Semana no Parque”, que narra as desigualdades sociais vistas em um final de semana num parque da periferia de São Paulo e que conta com a participação especial de Netinho de Paula, à época líder do grupo Negritude Júnior.
Em dado momento no documentário o grupo é questionado sobre a realização de algum trabalho social, ao que KL Jay, com muita propriedade, responde que o verdadeiro trabalho social do grupo é a criação de músicas que geram reflexão, que possibilitam ao jovem pobre a elevação da sua autoestima através de letras que mostram a sua realidade e exaltam a sua força.

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Se o reconhecimento do grupo se deu em 1993, a consagração veio quatro anos depois com o álbum “Sobrevivendo no Inferno”, considerado o disco mais importante do rap brasileiro, além de ter figurado na 14ª posição num ranking da revista Rolling Stone Brasil, que no ano de 2007 listou os 100 melhores álbuns da música brasileira de todos os tempos. Muito além do inegável sucesso de crítica o disco arrebatou os corações de uma geração de jovens nos anos 90 com as letras de canções que mesclavam versículos bíblicos e crítica social como “Gênesis” e “Capítulo 4, Versículo 3.
Nesse álbum a letra forte da canção “Diário de um Detento”, uma composição de Mano Brown livremente inspirada no diário de Jocenir, um ex-detento do presídio Carandiru, ajudaram a lançar luz sobre a realidade da população carcerária no país. Já a incursão de um jovem na vida do crime teve seus contornos delineados nos mais de 11 minutos da música “Tô ouvindo alguém me chamar”, uma canção longa com início, meio e fim marcados por uma narrativa ágil e uma letra envolvente, no melhor estilo “Faroeste Caboclo”, clássico da Legião Urbana.

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As consequências do estrondoso sucesso de “Sobrevivendo no Inferno” forçaram o grupo a fazer um pausa para reorganizar suas ideias e pensar no verdadeiro legado a ser deixado às próximas gerações. Ao término dessa breve interrupção, mais precisamente no ano de 2002, nascia o novo projeto musical do grupo intitulado “Nada como um Dia após o Outro Dia”, recheado de verdadeiras pérolas do rap nacional como “A Vítima”, uma canção inspirada num drama pessoal de Edi Rock quando envolveu-se em um acidente de trânsito com vítima fatal, no ano de 1994.
Vale registrar, ainda, as excelentes faixas “Vida Loka, Pt. 1” e “Vida Loka, Pt. 2”, além de “Negro Drama”, canção que traz uma grande reflexão sobre os percalços enfrentados ao longo do caminho dos integrantes do Racionais, entre o sucesso e a lama, e tornou-se um verdadeiro hino da comunidade negra sobre a valorização de suas raízes.

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A diretora Juliana Vicente conseguiu em seu documentário captar a essência dos Racionais, mostrando como as dificuldades vivenciadas e testemunhadas pelos integrantes do grupo dão corpo às composições de seus discos que acabam dando voz àqueles que não costuma ser ouvidos.
Um grande documentário, daqueles bons mesmo, em meio a tantas opções medianas no catálogo da Netflix, tanto para os fãs que poderão ver os bastidores de shows e relembrar os grandes sucessos do grupo, quanto para as novas gerações que serão apresentadas a um grupo musical com letras inteligentes e mensagens incisivas, aliadas a batidas marcantes, mostrando que a música popular brasileira vai muito além de dancinhas no Tik Tok e de letras superficiais.

william

Direito por formação, Nerd e Otaku por inspiração, Cinéflo por concepção, Redator nas horas de solidão, Pai e marido por paixão e Cristão por convicção.