Resenha | “Kali”
Violento e enérgico, “Kali” é o tipo de leitura que parece um trem desgovernado. Com um roteiro bastante autocontrolado, mas cheio de violência extrema e ação deslumbrante, Kali vai agradar aos fãs de Mad Max: Fury Road ou outros expoentes do dieselpunk.
Saiba que esta é uma história em quadrinhos que se orgulha da hiperviolência, dos clichês visuais e do apelo erótico. Ainda assim, a despeito dos riscos, o roteirista Daniel Freedman e o artista Robert Sammelin criaram uma excelente história de vingança, capaz de preencher desertos pós-apocalípticos com bons personagens e diálogos interessantes.
Faz parecer ser parte de algo mais
A trama acompanha “Kali”, uma ex-líder de uma gangue conhecida como Matrikas. No começo da história sabemos pouco, Kali foi traída e capturada por uma organização fascista conhecida como “A Máquina”. O que fica óbvio logo de cara é que Kali planeja escapar e se vingar das traidoras.
Muito em razão de um mundo que parece recheado de passados, o quadrinho se faz parecer parte uma algo maior. Não sei dizer se “Kali” faz parte de um universo à parte, algo que muitos autores constroem hoje em dia, mas cria em nós, leitores, essa sensação de uma parte de um todo. Freedman tem algo a dizer com este quadrinho, com as reflexões sobre liberdade presentes desde a pequena epígrafe que abre a obra. Ainda assim, em meio à ação explosiva, não é um fio condutor simples de se seguir. Isso acontece, também, em razão do escopo criado sobres este universo, se há tanto que já aconteceu como background, o autor se permite deixar muitas perguntas sem resposta. É o suficiente para contar a narrativa, mas lendo-a, falta contexto.
Em especial, temos problemas com o diálogo. A maior parte das conversas em “Kali” são discussões raivosas ou gritarias entre inimigos odiados. Muitos balões são tomados apenas por insultos e palavrões, Algumas vezes, no meio das quais temos exposições gratuitas da trama. Em certo ponto pode beirar a sátira. Ocasionalmente, o enredo faz uma pausa para reflexões filosóficas aleatórias. Se a intenção é parecer sombria e sombria, às vezes vai longe demais e se torna mais do que um pouco repetitivo. Não é envolvente e fica maçante rapidamente.
Uma massaroca pós moderna
O resultado é que temos personagens pouco consistentes. Mesmo com todo o apelo “massavéio”, o leitor não tem muitos motivos para gostar ou simpatizar com Kali ou sua busca. A busca pela vingança não nos causa empatia, pois a forma como os motivos de cada envolvido é expresso na história deixa a desejar. Alguns flashbacks nos dão alguma noção, mas mesmo depois da explicação completa parece não ser o suficiente.
Embora o mundo seja rico, na trama, a maioria dos outros personagens existe apenas para se opor ou apoiar Kali em sua busca. O que é construído aqui, narrativa e imageticamente, são tipos estabelecidos em clichês e tropos do Punk (os militares fascistas, os rebeldes idealistas, a guerreira implacável, a femme fatale e etc) e não parece que alguém tenha suas próprias vidas individuais. Eles existem apenas no momento, constituindo uma imagem necessária à trama. É o suficiente para transmitir a história e o significado, mas não chega a provocar vínculos no leitor.
Nesse sentido, o que temos é uma obra pós moderna em síntese. A narrativa fragmentada, as referências a outras obras como uma forma de comentário a abordagem irônica e satírica. E, acima de tudo, a profusão de elementos que aparentemente não se misturam, tudo isso situa “Kali” dentro de uma corrente de estilo.
Ainda assim
Além disso, a força da arte em “Kali” supera qualquer fraqueza no diálogo ou personagem. A arte de Sammelin é tão forte e a ação tão empolgante que há muitas emoções derivadas apenas do combate. A ação é de arrebentar, e isso pode ser o suficiente para alguns leitores. Se ação hardcore é tudo o que você precisa, então “Kali” tem isso de sobra.
A arte é verdadeiramente fantástica. As ilustrações e o traço são marcantes, com grande uso de cores e composição muitas vezes provocadora. É visualmente atraente, ao mesmo tempo em que parece muito sujo e áspero. Ainda que haja muito apelo sexual aqui, não temos rostos bonitos, mas sim rostos rudes, moldados por um ambiente selvagem. É uma maneira elegante dar aos personagens uma profundidade que falta aos diálogos.
No geral, a arte é tão poderosa que “Kali” quase poderia ser uma história em quadrinhos sem diálogos. Seria curioso pensar se o enredo básico, os tropos conhecidos e a metalinguagem seriam o suficiente para funcionar. Uma ideia para o futuro.
Editora : Alta Geek; 1ª edição (15 maio 2023)
Idioma : Português
Capa comum : 160 páginas
Dimensões : 17 x 1.5 x 26 cm