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Série | O Voo de Diana – 1ª parte

Confira a gradual habilidade que emulava o voo da Mulher-Maravilha, expressão do esforço de seus produtores em colocá-la no centro do poder dos personagens masculinos da época.

Leia antes:

“O Voo de Diana: apresentação”

“O Voo de Diana: introdução”

Apontamentos de Wagner

Nessa parte, o tratado discorre sobre os hiper-saltos da Princesa Amazona, a habilidade que precedeu seu voo e que de certo modo fora uma tácita reprodução da habilidade que tinha o Superman na mesma década, os anos 1940.

Discorre ainda a incongruência entre o traje da guerreira grega (muito mais american way life) e a tradição helênica das roupas femininas.

Destaque para uma teoria da autora que buscou explicar outra incongruência: a existência duma aeronave invisível num mundo isolado da tecnologia patriarcal e que era a símile das eras clássicas da Grécia antiga.

Por fim é arrolada uma galeria de capas onde se prenunciava a possibilidade de um voo sem o jato invisível, com as habilidades gradativas chamadas “deslocamento suspenso” e “autoplanagem”.

✩ Mulher-Maravilha e seus Hiperssaltos de Início de Carreira

Recorrente nos primórdios das HQs de super-heróis, o superser disfarçado saía voando por uma janela e se transformava. Como a Mulher-Maravilha não voava, tinha de dar saltos e chamar o jato invisível. Cena de Wonder Woman #08 (1941).

William Moulton Marston não elaborou a Wonder pra voar como uma deusa – e arrisco dizer mais, tampouco pra refletir o modo de vida guerreira duma amazona grega!

Apesar de não ser algo oficial, nós, leitoras veteranas e conservadoras, na experiência de leitura, postulamos que o aparato mítico-grego da Maravilhosa esteve vinculado à Ilha Paraíso Themyscira e deixado lá pra trás quando da saída de Diana pro mundo exterior patriarcal.

Seu modo de vida amazônico deu lugar a uma simples idiossincrasia grega (expressa nas frases de efeito que aludem aos deuses). Por isso, em seu começo, não a vemos prestar culto a suas divindades, não a vemos treinando marcialidade fora de Themyscira, não a vemos conservando suas tradições e ritos, e a vemos permitir-se quebrar o voto de abstinência de sua confraria (ao noivar com Steve Trevor) e absorver, tímida, o modo americano de viver; por força disso, o nome “Mulher-Maravilha” mais suas traduções equívocas de “Miss América” ou “Supermulher” nada aludíveis à Grécia.

Mulher-Maravilha “grega”?

O uniforme e a aeronave da heroína são pouco gregos ou mitológicos, pois na trama eles agem como elementos politizados: o uniforme tem cores e símbolos da nação estrangeira, e a aeronave é um fator de comparação com a aeronave de Steve Trevor, a fim de ser vista como representante duma civilização de igual tecnologia.

Não era que Marston queria desprezar a fortuna grega (ele lia bastante os clássicos); apenas focar sua defesa no feminismo, não importando de qual procedência viera. Entretanto, a Mulher-Maravilha não era uma mulher comum; era uma semideusa “(…) linda como Afrodite, sábia como Atena, tão forte quanto Hércules e tão veloz quanto Mercúrio, vinda da Ilha Paraíso, onde as amazonas governam soberanas…” (Sensation Comics #01, 1942 – introd). E por isso ela saltava, sobre-humanamente, a grandes léguas ou alturas.

Tal trunfo era, na realidade, pra rivalizar com Superman de Jerry Siegel e Joe Shuster, que, à época, não voava também, só hiperssaltava (vocês sabiam disso, gente?). Ainda assim, Marston, desintencionado, abriu margens pra confusão do voo na lambança que futuros escritores, junto dum mercado imaturo, iriam aprontar.

Nas quadrículas, os hiper-saltos eram indicados por grafismos, os traços curvos que eram rabiscados atrás do desenho.

✩ O Papel do Jato Invisível: uma Teoria Minha

O antes chamado “amazon plane” ou “invisible plane” era o único meio pelo qual a Mulher-Maravilha podia voar. Cena de Wonder Woman #81 (1956) na arte de Irv Novick.

O jatinho invisível de Diana é um resultado daquela imperícia das editoras emergentes na Era de Ouro.

William Moulton Marston não se prendeu a explicá-lo, e, por consequência, o jato seguiu enigmático até o pós-Crise nas Infinitas Terras. Simplesmente ele não tem explicação definida ou razão de origem antes disso.

Mas eu, através de 23 anos de leitura e coleção, teorizei algo referente e que encontra apoio em observações de roteiros, guia de quadrinhos, sites estrangeiros e fóruns de debate entre fãs. Não é consenso, mas é algo relativamente reconhecido. O jato invisível na pré-Crise é uma encarnação essencial de Pégaso, o unicórnio voador, espólio de guerra grego, e, portanto, item de Themyscira, e não o tal metal “amazonium”.

O Jato invisível seria uma encarnação da essência de Pégaso?

O jato, diferente de qualquer outro, pode atravessar a atmosfera terrestre até o espaço sideral.

Ele é invisível de modo relativo, pois pra Diana e pras demais amazonas ele é visível (alguém aí já viu Diana “errar” seu embarque? Ou as themysciranas não perceberem seu sobrevoo?); já pros mortais e outros seres o veículo é invisível.

Se fosse puro metal geofísico bruto, o jato não atenderia ao comando de voz ou à telepatia de Diana, e careceria de combustível; isso não acontece porque o jato é orgânico, vívido, místico, é a essência mítica de Pégasus adestrado pras petições das amazonas, e, por isso mesmo, ele é destrutível.

Não vou aqui dissertar sobre isso agora, mas se quiserem, noutra oportunidade, poderei fazê-lo, citando a fundamentação e as fontes.

Quem quiser se antecipar em algumas poucas coisitas, pesquise sobre Sensation Comics#1 (1942), Wonder Woman #32-36 (1949), #43 (1950). Podem conferir algum fundamento num compacto da Mundo dos Super-Heróis#9 (“Mulher-Maravilha de A-Z”. Ed. Europa). O jato, a princípio, servia pra atender a necessidade de voo da amazona, já que ela apenas hiperssaltava.

Um curioso presente alienígena

Mais tarde, quando Diana passou a planar e a se deslocar em “correntes de ar”, o jato serviu de locomoção e bagageiro pra grandes distâncias.

Na fase pós-Crise (John Byrne), o jato não é mais a essência de Pégasus; é um presente elemental transmórfico alienígena chamado “disco lansinar”, da raça lansinariana, e que pode assumir qualquer forma física – e aí o avião –, chegando até mesmo a se transformar, certa vez, numa redoma flutuante chamada “Domo Maravilha” (não publicada no Brasil, mas com rápidas aparições em DC 2000 #6 , 1990, ed. Abril; Superman & Batman # 5, “Ondas”, 2005, ed. Panini).

Nesse último estágio, o jato tem mera função saudosista e ilustrativa, pois aqui a heroína voa e pode transportar cargas em seu voo. Ficou mais libertário assim, concordam?

Na atual série “Os Novos 52!”, o jato invisível nunca pertenceu a Mulher-Maravilha. Em vez disso, ele foi projetado pelo departamento de segurança nacional dos EUA, “ARGUS”; servindo como principal forma de transporte para Amanda Waller e Steve Trevor.

✩ A Mulher-Maravilha dá Indícios de que Pode Voar…

O chamado deslocamento suspenso, quando a super-heroína, impulsionada, conseguia deslocar-se suspensa no ar. A capa de Wonder Woman #43 (1950) traz um grafismo curvado após o jato invisível.

Robert Kanigher e Denny O’Neil assumiram a responsabilidade de escrever as histórias após a morte de Marston em 1950. E, como eu disse no começo, na tentativa incontida de aperfeiçoarem a semideusa, vieram as lambanças!

Um retcon que serviria mais tarde pra fundamentar a teoria da vulnerabilidade ao patriarcado, tiara-bumerangue, braceletes walk-talk, brincos que a permitiam respirar em ambientes no espaço, telepatia com animais (dada pela deusa da caça, Ártemis, e recuperada em Crise Infinita nos animais guiados por Diana a atacarem Superman manipulado por Maxwell Lord!). E, por fim, o deslocamento suspenso nas correntes de ar e a autoplanagem.

Deslocando-se em correntes de ar

Sim, galerinha, agora a Wonder podia dar hiperssaltos e se deslocar pra vários pontos através da corrente de ar. Sem essas correntes ela não planava, e mesmo assim dependia de sua aeronave, pois ainda não voava por si mesma.

A ideia veio de O’Neil, que queria acrescentar mais tensão às cenas de ação que envolvessem confrontos aéreos ou espaciais. Adicionando a tensão de Diana cair; esborrachando-se no chão e morrendo (no caso de falta de correntes de ar ou atraso do jato).

Nessa época, a teoria da vulnerabilidade ao patriarcado rezava que Diana perdeu a sua imortalidade quando deixou Themyscira. Por isso, a tensão na chance de ela morrer em queda-livre.

A autoplanagem e o deslocamento suspenso durariam até 1968, quando Diana “perdeu” temporariamente as habilidades e virou agente secreta. As histórias de 2007 da Mulher-Maravilha na Panini, escritas por Allan Heinberg, aludem à essa fase “agente secreta Diana”.

Continua na próxima edição (2ª parte).

Wagner Ávlis

Crítico de histórias em quadrinhos, membro da Academia Maceioense de Letras, articulista e professor de língua portuguesa.