Pérolas ocultas no catálogo da Netflix – As linhas tortas de Deus (2022)
Quais são os limites que estabelecem o grau de sanidade de alguém? A loucura de uma pessoa deve ser definida por aqueles que a cercam, ainda que a pessoa acredite estar sã? Esses questionamentos norteiam a incrível produção espanhola “As linhas tortas de Deus”, o mais recente trilher psicológico da Netflix, que tem gerado acalorados debates em torno da seguinte pergunta: Afinal, Alice está louca?
O longa é baseado no livro “Los Renglones Torcidos de Dios”, lançado em 1979 por Torcuato Luca de Tena que embora tenha escrito uma obra de ficção, realizou pesquisas em manicômios na década de 70, entrevistou médicos, pacientes e acompanhantes com o intuito de conferir maior veracidade à sua obra e o resultado não poderia ter sido mais fiel à realidade vivenciada nos sanatórios da época.

A trama acompanha a história de Alice Gould (Bárbara Lennie) uma detetive particular que alegando sofrer de paranoia voluntariamente interna-se em um hospital psiquiátrico para investigar as circunstâncias misteriosas da morte de um jovem paciente. Os problemas na trajetória da detetive ocorrem na medida em que sua própria sanidade é colocada em perspectiva, durante a internação, fazendo com que a protagonista experimente uma grande confusão mental, que em grande parte é compartilhada com o público que a todo momento questiona a sanidade de Alice.
O cineasta Oriol Paulo, diretor do longa, desenvolve um trabalho fantástico na reprodução do sanatório, uma unidade de saúde que vende a imagem de uma clínica na qual os pacientes gozam de plena liberdade, mas que em seu interior adota tratamentos bastante questionáveis (e largamente utilizadas no século passado) como o isolamento, a sedação contínua e o eletrochoque.

Nesse tipo de filme a escolha do elenco é algo fundamental para que a trama se sustente e nesse ponto o longa acerta em cheio, não somente pela escolha de Bárbara Lennie que leva o filme nas costas como a protagonista, mas também pelas brilhantes atuações dos coadjuvantes Ignacio Urquieta (Pablo Derqui), o médico contido César Arellano (Javier Beltrán), além da incrível performance de Eduard Fernández, no papel do diretor Samuel Alvar que ao longo do filme consegue estabelecer uma relação de amor e ódio com o público.
Uma das estratégias habilmente utilizadas pelo cineasta espanhol para dificultar a compreensão da linha narrativa é a utilização de cenas fora da linha do tempo regular e que somente farão real sentido ao final da projeção, embora o público seja levado a crer que a história encontra-se em seu curso natural.

A cada nova tentativa de provar sua sanidade mental diante dos médicos Alice parece afastar-se cada vez mais de seu objetivo, o que leva o Dr. Alvar, diretor do sanatório, a utilizar métodos cada vez mais agressivos no tratamento da paciente.
As reviravoltas do filme não ficam reservadas apenas para o final, sendo lançadas praticamente durante todas as mais de duas horas da projeção, mas não de forma aleatória para somente surpreender a audiência e sim de maneira orgânica, de modo a permitir que ao final do filme, notadamente na última cena, protagonista e público partilhem da mesma sensação, do mesmo tipo de olhar e tenham condições de responder à questão central do filme: Afinal, Alice é louca? Preparem sua pipoca, acomodem-se no sofá e façam suas apostas.