Entrevista

Entrevista| Renato Barbieri, diretor de “Pureza” recebe Ordem do Mérito e fala sobre o filme

O cineasta Renato Barbieri, diretor do filme “Pureza”, com com a atriz Dira Paes, será homenageado pelo TST com a Ordem do Mérito Judiciário do Trabalho. A comenda é concedida desde a década de 1970, para as instituições e personalidades que se destacam no exercício de suas profissões ou pelos serviços prestados à sociedade e à Justiça do Trabalho.

Aproveitando a ocasião, convidamos o diretor a conceder uma entrevista para o Nerd Tatuado, que você confere agora.

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O filme  se inspira em uma história real, retratando a saga de uma mãe que desafiou fazendeiros e jagunços para resgatar o filho da escravidão contemporânea na Amazônia brasileira. A batalha de Pureza para encontrar seu filho, deu impulso decisivo à criação, em 1995, do Grupo Especial de Fiscalização Móvel, que uniu auditores-fiscais do trabalho, policiais federais e procuradores do trabalho para viabilizar o cumprimento da lei e a observância de direitos trabalhistas em todo o território nacional.

Segundo Barbieri, a emergência dos nossos tempos o levou a tratar de temas urgentes, como a escravidão.

“Nunca houve um único dia na história desse país em que ele tenha sido uma nação livre. Pelo contrário, sempre houve milhares de escravizados. Antes da abolição e depois da abolição também. A escravidão contemporânea começou no 14 de maio de 1888. Fomo o último país das Américas a abolir a escravidão e nossa abolição foi tardia e incompleta, por que não incorporou aqueles que foram escravizados como cidadãos da nação brasileira.”

Para o diretor, a escravidão não é apenas um tema entre tantos outros temas, mas um elemento comum de uma sociedade que paradoxalmente investe nela ao mesmo tempo em que prega a liberdade como bem final.

“Quando você não dá uma escola de qualidade para a população, apenas para a elite, você está dando condições para que boa parte dessa população, de alguma forma, esteja presa ao trabalho escravo. Por que o próprio trabalho pode ser um meio de escravidão. Quase metade das famílias brasileiras está endividada. A dívida é um tipo de escravidão. “

No filme “Pureza”, é retratado uma forma comum de se submeter trabalhadores ao trabalho escravo, que é atrás das dívidas com os próprios empregadores. Quando pessoas são aliciadas para empregos que supostamente são honestos e ao chegar são obrigadas a pagar por tudo, desde alimentação até as ferramentas de trabalho, gerando dívidas impagáveis com que os criminosos passam a coagir as vítimas.

NT: O filme trouxe temas que para muitos brasileiros, são tratadas como coisas do passado e infelizmente não são. Como foi possível construir essa história com sensibilidade junto ao elenco e lidando com a história real que o filme retrata?

Barbieri: A gente fez o Pureza, e quando digo a gente falo de um equipe maravilhosa e engajada e associações que apoiam o filme, toda essa malha construída ao longo dos anos contribui para chegar ao filme que vocês assistiram. São muitas camadas que aconteceram na caminhada. Não houve uma ideia ou insight, primeiro por que o real é inesgotável. Essas múltiplas camadas do real exigiu muita síntese e recorte para caber em uma hora e meia. Foi preciso muita pesquisa, entrevista com pessoas escravizadas, ativistas, ex-gatos (como se chamam os aliciadores). Eu fiz o caminho onde dona Pureza passou por terra.

Tudo que há no filme é um recorte dessa gigantesca pesquisa. E a partir disso, há todo um pensamento estratégico de como se fazer cinema. De como comunicar e construir um arco dramático e originar o roteiro. Depois disso é preciso tirar do papel e levar pra imagem e do som. Construir uma equipe engajada, com pessoas que entrem de corpo e alma, com toda sua sensibilidade e seu engajamento na causa abolicionista. Isso faz toda a diferença.

Para o diretor, o mais importante é ter um apego à história que se conta e não um apego pessoal de posse da ideia.

Barbieri: E depois disso ainda vem a montagem, que é uma terceira escrita do filme. Além de todo o trabalho de música, de som. Enfim, realmente é um grande trabalho, muito difícil, mas é preciso estar atento ao real e tomando decisões com base na sensibilidade desse real.

NT: No filme, muito acertadamente, é mostrado como muitas vezes a relação desses criminosos com políticos e a justiça é bastante promíscua. Isso leva muitas pessoas a pensarem que não há salvação na política. Por outro lado, você está recebendo uma comenda do poder judiciário. O que você poderia dizer para tratar dessa falsa dicotomia, como podemos confiar na política entendendo essa relação complexa entre a má política e a boa política?

Barbieri: A sua questão dá pra escrever um livro. (Risos) A boa política se dá pelo ativismo social com cada pessoa se reconhecendo como um agente histórico e não como um número. O sistema tenta nos convencer e muitas vezes no convence que somos números. Não acredito nisso, cada um de nós é uma usina atômica, com uma potência muito grande. Aí está a boa política, cada um usando sua inteligência e atuar em conjunto para fazer o que precisa ser feito, que é proteger a vida.

A boa política é isso, cada um assumir sua posição como agente histórico e não seguir a massa como no bolsonarismo. Temos pessoas repetindo frases e mentiras como se fossem robôs. O que a dona Pureza fez foi se colocar como agente histórico sendo ainda uma pessoa simples. Ela nunca fez uma faculdade, ela aprendeu a ler com 40 anos para ler a Palavra do Senhor e ela moveu uma montanha. Isso pelo amor ao seu filho e pela sua inteligência, e pela sua capacidade indignação e seu senso de justiça. Ela fez alianças importantíssimas em defesa da vida, da justiça e do direito de viver.

Interessa ao sistema a gente se sentir desvalorizado, retirar a potência de quem nos somos. E a política que eu acredito é essa política da potência. Todo o resto é a Necropolítica, da morte, do desmatamento, da dívida e da fome. Isso já foi dito muitas vezes: é uma vergonha que em nosso país alguém ainda passe fome.

Com 40 anos de carreira, o cineasta Renato Barbieri também é documentarista, produtor, roteirista e realiza filmes de longa-metragem e séries para TV nos formatos ficção, documentário e animação, com foco em produtos audiovisuais de relevância social e ambiental.